- Diretamente do Hempadão - por Fernando Beserra
Recentemente Miley Cyrus, atriz que protagonizou o seriado Hannah Montana, foi filmada em seu aniversário fumando um bong. A noticia repercutiu como se a famosa jovem tivesse fumado cannabis, isto é, maconha, entretanto, ela mesma informou que teria fumado Salvia divinorum. Muitas notícias sensacionalistas vieram desta informação, já que a Salvia divinorum, embora tenha sido cada vez mais utilizada nos EUA, ainda não é muito conhecida mesmo por muitos “especialistas” em substâncias psicoativas.
De modo geral, tem-se dito apenas que a Salvia divinorum é perigosa por ser um “alucinógeno” podendo causar toda série de alucinações, desrealização, delírios, em suma, desorientações da senso-percepção, do pensamento e dos afetos, facilitando atitudes auto-destrutivas como um caso narrado de suicídio após um uso semanal da substância. Desta forma, cresce o número de pessoas pedindo sua proibição, já que a Ska pastora – nome original da planta - não possui legislação específica na maior parte do mundo, não sendo legalizada, pois sequer chegou a ser proibida nestes locais.
Com efeito, pouco tem sido teorizado, provado, ou refletido a luz de uma análise menos comprometida com preconceitos, estereotipias e pré-julgamentos, baseados no proibicionismo enquanto política de drogas do common sense (construído no último século, diga-se de passagem). A partir de tais notícias, são forçadas causalidades suspeitas, com o intuito de levar o espectador a crer que uma substância teria o potencial de produzir, isoladamente, um comportamento. Trata-se de um reducionismo que elimina da análise toda a existência anterior do sujeito, todas suas outras vivências, expectativas, desejos, etc., reduzindo toda sua complexa vida a um fator, doravante sombrio: “O uso de uma substância”.
A Salvia divinorum é uma planta da família das Labiatae, da família da Menta, que contêm o diterpenóide salvinorina A e B, sendo a primeira o principal princípio ativo da Sally-D, como ficou conhecida nos EUA. Esta planta, singular entre os enteógenos, portanto, de difícil comparação com outros enteógenos, era consumida no México por povos tradicionais da região. Ela era utilizada em ritos e, assim como outros enteógenos usados na região, visava a produção de um contato com a realidade sobre humana que, com um risco de erro, podemos chamar de “numinosa” ou extra-ordinária. Assim, no contato com tal realidade os curandeiros poderiam chegar a diagnósticos de doenças, curas ou mesmo levar o doente a resignação diante de doenças intratáveis. De acordo com Maria Sabina (sábia dos cogumelos, como ficou conhecida) a Salvia D. era utilizada na ausência dos cogumelos psilocíbicos, estes sim bem mais populares entre os povos indígenas mazatecas.
Considerados por alguns como um enteógeno menor, por outros como o enteógeno par excellence (Bigwood), a Salvia D. permanece como uma substância misteriosa. Foi chamada também, por Diaz, junto as Cannabis e a Calea zacatechichi de Onirógena, ou seja, produtora de sonhos. A dificuldade do uso tradicional, que se dava mastigando as folhas, se dá pelo péssimo gosto. Embora não-índios já utilizem a Salvia d. fumando-a desde o início da década de 1970, é mais recente a popularização de “extratos” da Maria Pastora para o fumo. Tais extratos visam, pela combinação de folhas e potencialização do princípio ativo, um uso facilitado e mais forte, levando o uso da Salvia divinorum a outros patamares. Tais usos são inéditos e chegamos a usos, portanto, preocupantes se não tivermos estudos que nos levem a visualizá-lo sem o prisma do preconceito e da misantropia. Usos com riscos, pois se o uso tradicional da Salvia d. possui uma segurança atestada pela longa história de seu uso por povos tradicionais, por outro lado, tais extratos chegam a potencializar o uso da Sally-D em 5, 10, 20 ou mesmo 50 vezes.
Não há dúvidas de que ao lado de usos não problemáticos da Salvia divinorum, usos com conhecimento de causa, com intenções elaboradas e em contextos apropriados, usos indevidos tem sido realizados, sem o menor cuidado com “quantidades” do uso, elaboração de finalidades, preparação de cenário, etc., levando a situações que colocam em risco os usuários. Notícias sensacionalistas como ocorreram tantas vezes no “caso” de Miley são preocupantes, pois podem induzir ou potencializar usos inadivertidos, já que o assunto não foi discutido, apenas o uso da atriz demonizado. Tal uso demonizado contribui, além do nosso já escasso conhecimento da Salvia divinorum, para a invenção de estereótipos sombrios entre os usuários da Sally D. o que já ocorreu tantas vezes na história do uso de substâncias psicoativas tornadas ilícitas.
É preocupante, muito mais do que com o uso da Salvia D. por psiconautas, o uso desta planta por jovens que visam utilizá-la apenas ludicamente, mas, sem o processo de busca ativa de informações sérias que levem a estratégias de uso mais sadias. Sem tal busca por um uso mais responsável, corremos o risco, devido à estrutura de efeito da planta, especialmente em extratos bastante fortes, de produzir bad trips em grande quantidade nestes novos usuários, que nem sempre estão preparados – ou possuem um círculo protetor – para que tais peias venham a se tornar alimento para transformações positivas em suas vidas.
Outro risco que deve ser combatido seria a proibição da planta, como toda proibição, vulgar, pois oculta e impede estudos que visariam produzir outras qualidades de uso, sejam medicinais, visando transformações pessoais ou mesmo usos lúdicos. Trata-se de possibilitar diferentes usos, ao invés de um combate contra pragmático, re-vendo, re-imaginando, e caminhando sempre para a diminuição de riscos e danos, levando em consideração que o uso não cessará pela via da proibição, mas a proibição apenas poderá tornar mais nebuloso tal cenário, por exemplo, com a criação de “novos produtos” do mercado ilegal com misturas nocivas para a saúde dos usuários, além da contribuição de mais um produto para traficantes violentos – frutos da proibição - venderem sem qualquer regulamentação, para pessoas de qualquer idade ou saúde mental.