segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Em defesa da ciência

Lido em: Coletivo DAR

Dartiu Xavier da Silveira

Publicado pelo Zero Hora

Doutor em Psiquiatria e Psicologia médica

A maconha tem sido utilizada há séculos por suas propriedades terapêuticas e seu uso medicinal vem crescendo progressivamente em diversos países (EUA, Canadá, entre outros) graças à possibilidade de verdadeiros pesquisadores testarem suas hipóteses. É assim que caminha o avanço científico. Em inúmeras áreas, principalmente na medicina, observamos, felizmente, que barreiras moralistas e preconceituosas são derrubadas dando lugar a descobertas muito importantes para a humanidade. É o caso dos estudos com as células-tronco. No campo da dependência de drogas o cenário é o mesmo. Não haverá evolução no tratamento de dependentes e usuários pesados de drogas se permanecermos fechados a preconceitos. Este comportamento pautado em ideologias é na sua essência anti-científico! Têm sido muito animadores os resultados obtidos a partir de centenas de pesquisas científicas sérias comprovando a eficácia do uso de princípios ativos da maconha no tratamento de múltiplas doenças tais como glaucoma, dor crônica, ansiedade, câncer, AIDS e esclerose múltipla. Nos países verdadeiramente abertos à pesquisa e ao desenvolvimento da medicina os doentes que sofrem destes males já podem contar com os benefícios destes resultados incorporados ao seu tratamento.


Enquanto pesquisador da Universidade Federal de São Paulo, há muitos anos oriento teses e publico artigos sobre o potencial terapêutico da cannabis. A investigação deste potencial terapêutico obviamente não implica em não reconhecermos os riscos e danos relacionados ao uso indevido desta droga. Desta forma, causou-me surpresa tomar conhecimento da polêmica que se instalou no jornal Zero Hora, no último final de semana, a partir de um trabalho de minha autoria publicado há mais de dez anos em uma conceituada revista científica americana sobre o uso terapêutico de cannabis em dependentes de crack (Journal of Psychoactive Drugs, 1999). Maior espanto foi constatar que fui atacado pelo médico Sergio de Paula Ramos ao dizer que eu teria “fugido” de uma discussão sobre o tema em um congresso científico “escapando do debate científico sério”, tendo ele ainda acrescentado “Ele não teve peito de ir. O experimento não tem a menor credibilidade científica. Foi muito criticado quando veio a público, anos atrás. Foi feito com poucas pessoas, seguidas durante pouco tempo. Dizer que a maconha pode fazer algum bem beira a irresponsabilidade. É dar as costas para a ciência”.

Inicialmente gostaria de esclarecer que, contrariamente ao que afirmou o médico, não havia nenhuma discussão agendada, mas tão somente uma mesa redonda onde alguns trabalhos seriam apresentados, entre os quais o meu e o dele. Por um problema de organização do evento, foram equivocadamente programadas duas atividades simultâneas nas quais eu participaria. Diante do ocorrido, optei por estar presente na outra atividade, de maior relevância científica que a mesa referida, e solicitei a um colega que fizesse a apresentação do trabalho em meu lugar. A propósito, recordo-me de que a participação de Sergio de Paula Ramos, ao apresentar seu trabalho nesta mesa redonda, foi muito comentada durante o evento (Congresso Brasileiro de Psiquiatria) pelo seu conteúdo ideologicamente tendencioso e uso de linguagem pejorativa, onde ele inclusive se referia aos dependentes de maconha como “maconheiros”, comportamento inaceitável em um evento cientifico sério. 

O artigo que publiquei em 1999 tem ocasionalmente sido objeto de ataques e críticas descabidas lançadas por indivíduos que, ao fazê-las da forma como fazem, denotam sua total ignorância sobre o estudo realizado. Claramente, demonstram sequer terem lido o trabalho!

Gostaria de esclarecer que, efetivamente, trata-se tão somente de um estudo observacional onde apenas constato um fenômeno espontâneo que ocorre entre dependentes de crack: o uso da maconha na tentativa de se manterem abstinentes desta droga. O acompanhamento destes dependentes mostrou, surpreendentemente, que a partir de sua iniciativa de utilizar esta estratégia (substituir crack por maconha) 68 % destes dependentes conseguiram abandonar o uso de crack. Posteriormente deixaram também de utilizar a maconha.

Finalmente, quanto à seriedade científica deste trabalho, ele não somente foi aceito para publicação em uma reconhecida revista científica americana como foi elogiado por pesquisadores nacionais e internacionais de grande prestigio na comunidade científica acadêmica.

Não se trata de ser contra ou a favor do uso de maconha. Trata-se, sim, de ampliar o conhecimento que temos sobre as propriedades neuroquímicas das substâncias e seus efeitos no cérebro de forma a permitir o desenvolvimento de novos tratamentos com maior eficácia. A postura científica de pesquisa pressupõe isenção de crenças pessoais, preconceitos e ideologias, o que eventualmente nos coloca frente a constatações surpreendentes.

Não entendo porque este jornal publicou as críticas inusitadas destes “especialistas” sobre a minha pessoa e sobre a qualidade científica deste meu trabalho sem consultar minha opinião a respeito e sem paralelamente submetê-las ao julgamento de referências renomadas e verdadeiros especialistas no campo das dependências em nosso meio. O Brasil conta com grandes pesquisadores na área de drogas, com projeção internacional, que têm opiniões bastante diferentes das divulgadas neste jornal, além de se destacarem por uma postura eticamente impecável.

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