Entrevista com a historiadora Isabela Oliveira sobre o chá de ayahuasca e a Igreja do Santo Daime.
Adriano Belisário
Isabela Oliveira completou seu doutorado em História pela Universida de Brasília com a tese "Santo Daime: um sacramento vivo, uma religião em formação". Nesta entrevista, a pesquisadora fala sobre a origem do culto do Santo Daime, suas influências e as mortes associadas ao uso de ayahuasca. Confira aqui a matéria completa sobre a regulamentação da bebida.
RHBN - Como o fundador do Santo Daime, Raimundo Irineu, é visto pela História? O que se sabe sobre sua biografia e legado?
Isabela - Raimundo Irineu Serra nasceu no Maranhão no ano de 1890. Sobre a sua infância e juventude sabemos muito pouco. Apenas que sua família era muito pobre, cristã, provavelmente descendente de escravos - já que ele era negro -, que trabalhavam com a extração do óleo de babaçu e participavam, em seu cotidiano, de diferentes práticas culturais maranhenses, entre as quais destacam-se o Tambor de Crioula, a Festa do Divino Espírito Santo e a Festa de São Gonçalo.
No início do século XX, o Sr. Irineu se mudou para o Acre dentro do fluxo migratório dos nordestinos para a Amazônia por ocasião da exploração em larga escala do látex.Chegando ao Acre, ele passou, então, a trabalhar como seringueiro e posteriormente integrou a Comissão de Demarcação de Limites que naquele momento instituía as fronteiras entre o Brasil, o Peru e a Bolívia. Foi nesse período que ele teve contato pela primeira vez com a Ayahuasca, provavelmente no contexto de uma prática nativa com a bebida onde um "xamã" também conhecido na região como vegetalista, distribui a bebida para um número reduzido de participantes com diferentes propósitos, entre os quais a cura de doenças. Tais práticas e aquelas desenvolvidas pela população indígena com a Ayahuasca são extremamente comuns e amplamente disseminadas na região amazônica brasileira e andina há vários séculos. Tal reconhecimento levou, inclusive, que o Peru considerasse, no ano passado, a Ayahuasca como Patrimônio Cultural dessa nação.
Sobre esse período da vida do Sr. Irineu, no início do século XX, sabe-se por meio das narrativas orais dos adeptos da religião que ele teve fortes experiências com a Ayahuasca, entre as quais constam relatos que mencionam encontros dele com a Virgem Maria da Conceição dentro da floresta. Segundo os daimistas, tais experiências teriam levado o Sr.Irineu, anos mais tarde, a instituir uma nova forma de utilização da bebida, o que se deu, em grande medida, já na década de 30 na capital do estado, Rio Branco.
Entre as décadas de 30 e 60, período em que o fundador esteve à frente da religião, aconteceu a formação dos principais rituais e símbolos do Santo Daime, o estabelecimento de seus fundamentos doutrinários e o desenvolvimento de uma nova técnica para o preparo da bebida que leva, na atualidade, o mesmo nome da religião. Tais elementos, entre outros associados ao consumo da Ayahuasca, passaram a distinguir o consumo da bebida na religião de outras práticas com a mesma na região amazônica.
Na minha compreensão, um dos grandes legados do Sr. Irineu foi, justamente, a formação dessa nova maneira de se trabalhar com essa bebida milenar num contexto religioso e cristão, com o propósito de cura e auto-conhecimento. Tal permitiu que muitas pessoas de diferentes partes do Brasil e do mundo, portanto, também provenientes de diferentes culturas, tivessem acesso a essa bebida amplamente conhecida na floresta amazônica por seus princípios curativos e que essas pessoas pudessem utilizá-la dentro de um ambiente controlado por práticas ritualizadas e com uma finalidade positiva. Nesse sentido, se trata de uma grande contribuição para a compreensão de diferentes possibilidade de utilização das substâncias psicoativas na atualidade. Por outro lado, o Sr. Irineu fundou uma religião genuinamente brasileira que já está disseminada em mais de 25 países que contribui, portanto, para a expansão da cultura nacional pelo mundo.
RHBN - Como vê a passagem do uso do ayahuasca pelas populações nativas para a proliferação de Igrejas com base na planta que ocorreu no século XX?
Isabela - Como um fenômeno natural que inicialmente surgiu do contato da cultura nordestina com a cultura amazônica e que mais tarde ganhou uma dimensão nacional e internacional por meio da dinâmica inerente ao campo religioso na atualidade permeado pelo sincretismo e o multiculturalismo. Por outro lado, também percebo esse fenômeno como um desafio positivo a uma redefinição necessária do conceito do que sejam as substâncias psicoativas e do tipo de relação que as pessoas e a sociedade podem estabelecer com elas.
RHBN - As regras recentemente definidas proíbem a comercialização da bebida. Crê que é necessário um ritual litúrgico amparado por alguma instituição, como uma Igreja, para que se possa ter algum proveito espiritual do chá?
Isabela - Creio que a bebida em si, por meio de seus componentes químicos em especial a DMT (dimetiltriptamina), possui efeitos que conduzem a uma experiência de "iluminação", a um acesso a um certo tipo de conhecimento natural, organísmico, que na literatura científica é conhecido como noesis.
No entanto, é inegável que o contexto onde as substâncias psicoativas são usadas e as práticas nas quais esse consumo se insere produzem efeitos no significado da experiência visionária. No caso da Ayahuasca isso já foi, inclusive, estudado por inúmeros pesquisadores de diferentes áreas científicas já que a bebida é amplamente utilizada por pessoas de diferentes origens e culturas.
Nesse sentido, seria mais adequado pensar sobre qual a contribuição que um ritual religioso ou uma determinada cultura teria na construção do significado das experiências psicoativas e em que medida esse contexto contribui para uma possível validação ou não da utilização dessas substâncias na sociedade contemporânea.
RHBN - O Santo Daime pode ser considerado uma assimilação cristã do culto do ayahuasca? Em que medida existe uma tensão ou diálogo entre estas duas tradições?
Isabela - É inegável que as influências culturais cristãs são as mais evidentes na formação do Santo Daime. Elas estão presentes nos símbolos da religião, no conteúdo dos hinos entoados nos rituais, nas datas festivas... No entanto, outras influências também se fazem (e se fizeram) presentes na história da religião entre as quais encontram-se elementos do espiritismo, do esoterismo e das próprias práticas e cultura indígenas. Nesse sentido, me parece simplista considerar a religião Santo Daime como uma assimilação cristã da utilização da Ayahuasca que, por sinal, em si mesma, contempla uma enorme variedade de práticas realizadas por diferentes grupos sociais. Só para se ter uma idéia dessa grande diversidade, a Ayahuasca é conhecida por mais de 40 nomes na Amazônia brasileira e andina.
Por outro lado, partindo do entendimento de religião como um fenômeno histórico e social em constante formação, desenvolvido por teóricos como Peter Berger, também percebo que a medida que o Santo Daime continua se expandindo para o sul do Brasil e outros países, é natural que novas influências culturais se façam presentes na formação da religião e que novas leituras e compreensões de suas práticas sejam construídas pelos seus adeptos. Trata-se, nessa perspectiva histórica, de um processo contínuo e natural de ressignificação e construção social de sentidos o qual alicerça o desenvolvimento dos fundamentos filosóficos da religião e suas práticas. Nesse sentido, considero que existe no Santo Daime um diálogo constante entre diferentes influências culturais que contribuem para sua contínua formação.
No entanto, observando o campo religioso daimista na atualidade, também percebo que esse processo de formação social da religião, gera diferentes tipos de tensão, tanto em relação aos grupos ayahuasqueiros nativos como, especialmente, entre os próprios daimistas de diversas linhas que buscam, cada qual a sua maneira, legitimar suas posições de poder validando ou não determinadas práticas da religião.
Por tudo que foi exposto, considero as tensões existentes entre os diferentes grupos que fazem a utilização da Ayahuasca como um elemento inerente à dinâmica do campo religioso brasileiro na atualidade as quais convocam seus participantes, em última instância, a uma atitude de cada vez mais tolerância ao compartilhar um mesmo espaço
RHBN - Em uma escala de perigo à saúde humana, inclusive mental, como poderíamos situar o ayahuasca em relação a outras substâncias psicoativas?
Isabela - Existem inúmeras pesquisas em diferentes áreas científicas sobre a Ayahuasca: farmacológicas, antropológicas, sociais... Do ponto de vista cultural, no qual se inserem os estudos históricos, o que se observa é que a Ayahuasca tem sido utilizada há séculos por gerações de usuários, inclusive, por crianças, adolescentes e mulheres gestantes sem nenhum prejuízo relevante para a sua saúde física, psicológica ou social. Esse reconhecimento histórico e social foi, inclusive, um dos fatores que contribuiu para a liberação do uso da Ayahuasca para fins religiosos no Brasil e em diferentes países do mundo. Em minha pesquisa de campo para minha tese de doutorado sobre a história da religião tive a oportunidade de conhecer pessoas com mais de 50 anos que beberam o Daime durante toda a vida e cujas mães ingeriram o Daime durante toda a gravidez e até mesmo na hora do trabalho de parto. Tal é muito comum, por exemplo, entre os seguidores do Sr. Irineu em Rio Branco onde já existem 3 gerações de participantes da religião. Nesse sentido, considero que as histórias de vida daqueles que fazem parte da religião são um testemunho vivo dos efeitos da Ayahuasca. Por outro lado sei que existem outras religiões que fazem uso de substâncias psicoativas poderosas como o Peiote, que é utilizado pela Igreja Nativa Norte Americana, e o Iboga bastante utilizado no Gabão. No entanto, não tenho ciência de um estudo comparativo do efeito dessas e outras substâncias com a Ayahuasca.
RHBN - Como estão as pesquisas atuais sobre os usos terapêuticos do Daime?
Isabela - Existem inúmeras pesquisas em andamento entre as quais destaco, especialmente, a utilização do Daime em pacientes com depressão, com os quais se obtiveram bons resultados. No entanto, como os usos terapêuticos da Ayahuasca não são ainda regulamentados pela legislação brasileira, infelizmente, essas pesquisas ainda tem um âmbito restrito e não podem, em grande medida, contar com o aporte da experiência clínica dos profissionais da área de saúde.
RHBN - Como vê a tentativa de responsabilizar criminalmente os fornecedores do ayahuasca pelas mortes ocorridas logo após a ingestão da substância?
Isabela - Bom, em primeiro lugar é preciso esclarecer que até o momento não existem registros de morte logo após a ingestão da Ayahuasca. O que existem são relatos de mortes várias horas após a ingestão da bebida o que é algo bastante diferente pois o efeito da bebida tem uma duração média aproximada de, no máximo, 4 horas. Nesse sentido considero que existe uma distorção na maneira como essas mortes são veiculadas na mídia fazendo uma associação imediata do consumo Ayahuasca com a morte das pessoas sem considerar, por exemplo, o estado de saúde física e psicológica dessas pessoas anterior à ingestão da bebida. Afinal, pessoas de todas as religiões (e sem religião alguma) morrem afogadas e do coração.
Por outro lado, acho que a Ayahuasca é sem dúvida uma substância psicoativa poderosa e que o seu consumo deve ser regulamentado pela legislação brasileira, imputando, inclusive responsabilidade social para aqueles que fazem a distribuição da bebida seja para fins terapêuticos ou religiosos. No entanto, é importante ressaltar que já existem procedimentos em andamento nesse sentido nos principais centros das religiões ayahuasqueiras mais antigas entre os quais consta, por exemplo, uma avaliação psicológica que é feita com aqueles que pretendem tomar a bebida pela primeira vez e o controle, informal porém cotidiano, de não permitir que os participantes deixem os locais das sessões com a bebida antes que seus efeitos psicoativos tenham passado ou sido reduzidos a níveis mínimos. Nesse sentido, considero que esses e outros procedimentos devem ser mantidos e aperfeiçoados e que são uma condição essencial para a continuidade dessa expressão cultural brasileira.
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