por Fernando Beserra
Post que escrevi, direto do Hempadão
Ainda hoje encontramos uma nefasta percepção do Estado, e de diversas esferas da sociedade, sobre os usos de enteógenos, sejam estes individualizados ou mesmo coletivos e ritualizados. Mesmo no Brasil, onde algumas religiões usam a ayahuasca como sacramento, resiste um preconceito inaudito, pois estas religiões, como se sabe, são extremamente ordeiras e normalmente adequadas à moral cristã ou, de modo geral, a moral aceita pela sociedade circundante. A situação se torna mais absurda se pensarmos que as religiões ayahuasqueiras são religiões brasileiras por excelência e patrimônio de nossa cultura.
Ora, este preconceito em relação aos estados alternativos de consciência não é novidade na constituição da subjetividade ocidental. Quando os europeus chegaram as Américas, já em meados do século XVI o uso local de enteógenos por povos tradicionais da região era conhecido. Por exemplo, sementes de glória da manhã, teonanácatl e peiote nos arredores do atual México, ayahuasca no norte brasileiro, achuma próximo das cordilheiras, etc... Além do quase onipresente tabaco.
Enquanto os europeus procuravam um uso diário de drogas como o álcool, evitando a ebriedade, mas mantendo o hábito, os povos indígenas faziam rituais ou atos festivos completamente diferentes. Se não eram feitos com a mesma regularidade, por outro lado, o uso do álcool e dos enteógenos normalmente visava à entrada em estados alternativos de consciência através do êxtase.
O êxtase experimentado possuía um valor radical, pois proporcionava a relação entre a realidade ordinária com a realidade extraordinária, permitindo excursões anímicas, saídas do corpo, adivinhações, curas “milagrosas” pelos deuses das plantas, mediadas por homens-medicina, todos atravessados pelo que o Lévy-Bruhl chamou posteriormente de “pensamento mágico” (diferenciando-o do pensamento racional). Na verdade, tais pensamentos “indígenas” eram tão racionais e elaborados quanto o pensamento dos europeus. A divisão entre “primitivos” e “iluminados” (iluministas, iluminadores) favoreceu apenas a dominação e o controle.
Por onde poderia, pois, começar o controle senão pela constituição da subjetividade, dos modos de ser e estar no mundo? Os europeus foram rápidos em estabelecer que para controlar e dominar os índios era necessário combater ferozmente a “idolatria” e, neste sentido, para o europeu conquistador todos os devaneios religiosos indígenas estariam ligados aos estranhos consumos de substâncias que induziam o êxtase. Nas palavras de Henrique Carneiro em “Amores e sonhos da flora”:
Em relação às drogas alucinógenas – peiote, puyomate, teonanáctl e ololiuhqui no México, achuma e chamico no Peru – as ordens religiosas incluíram essas plantas como um objeto de destaque a ser perseguido na campanha de extirpação das idolatrias e a Inquisição fez ler nas missas, no México, editos proibindo o peiote, o ololiuhqui e o puyomate e, na década de 1540, começou a realizar processos contra europeus acusados de consumirem estas plantas.
É claro que onde existe repressão existe liberdade. Os enteógenos foram usados como forma de resistência e manutenção da cultura indígena em muitos locais. Enquanto o frade Bernadino de Sahagun considerava a embriaguez (chamava de embriguez dos porres por bebida às mirações com enteógenos) como a principal causa dos vícios, más obras e inclinações, por outro lado, para os nômades chichimecas, “última fronteira indomada onde a resistência aos espanhóis perdurará ao longo de séculos” (como diz Carneiro), o peiote é o manjar que lhe confere força e coragem.
Ficamos por aqui, com um apreço a resistência e aos bravos guerreiros de ontem e hoje!
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