Nesta terça a noite, o historiador antiproibicionista Henrique  Carneiro lança seu novo livro em São Paulo (convite para o evento aqui).
‘A abstinência também é um excesso’
Marina Lemle , Comunidade SeguraENTREVISTA / Henrique Carneiro
 O   ideal de uma sociedade abstêmia de bebidas alcoólicas e outras   substâncias psicoativas não é só irrealizável como indesejável, já que   pressupõe uma tutela estatal sobre o direito de livre escolha, os   estilos de vida e as práticas corporais.
O   ideal de uma sociedade abstêmia de bebidas alcoólicas e outras   substâncias psicoativas não é só irrealizável como indesejável, já que   pressupõe uma tutela estatal sobre o direito de livre escolha, os   estilos de vida e as práticas corporais.A afirmação é do professor de História Moderna da USP, Henrique   Carneiro, autor de “Bebida, abstinência e temperança na história antiga e   moderna”, da Editora Senac – São Paulo, que será lançado dia 19 de   outubro, na Livraria da Vila, em São Paulo.
No livro, assim como nesta entrevista ao Comunidade Segura, Carneiro   aborda o significado da bebida, seus efeitos, sua relação com o divino e   com a história das sociedades e discute a questão da abstinência, do   excesso e da temperança, que resultaram na procura de um ponto de   equilíbrio e moderação por meio de normas, regras, leis, pedagogias e   etiquetas sobre como beber adequadamente.
Doutor em História Social e membro do Núcleo de Estudos   Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip), Carneiro também é autor da   “Pequena enciclopédia da história das drogas e bebidas e de Comida e   Sociedade: uma história da alimentação”, da editora Campus, e de   “Filtros, mezinhas e triacas: as drogas no mundo moderno”, ”A Igreja, a   medicina e o amor: prédicas moralistas da época moderna em Portugal e  no  Brasil”, “Amores e sonhos da flora” e “Afrodisíacos e alucinógenos  na  botânica e na farmácia”, todos da Xamã Editora. Junto com o  historiador  Renato Pinto Venancio, ele é organizador de “Álcool e  Drogas na História  do Brasil”, da editora Amameda, e com Beatriz Caiuby  Labate, Sandra  Goulart, Maurício Fiore e Edward MacRae – seus colegas  pesquisadores do  Neip – de “Drogas e Cultura: Novas Perspectivas”, da  Edufba.
Qual o principal objetivo do livro “Bebida, abstinência e temperança na história antiga e moderna”?
O principal objetivo do livro é inventariar um conjunto de atitudes   sobre o bom e o mau beber ao longo da história ocidental e tentar   recuperar noções de virtudes éticas, como a da temperança, como   instrumentos úteis para a autogestão das condutas de ingestões, não só   de bebidas, como também de alimentos, num sentido de evitar os riscos   vinculados a usos problemáticos, abusivos ou compulsivos e buscar uma   ética da autorresponsabilidade em relação aos padrões de consumo.
Qual o grau de importância cultural e econômica da bebida ao longo da História?
As bebidas têm uma importância de primeira grandeza de um ponto de   vista cultural e econômico. Sempre foram alguns dos mais importantes   produtos no comércio desde a Antiguidade até a época moderna. Ânforas   com vinho cruzavam o Mediterrâneo na época do Império Romano e o álcool   destilado tornou-se, desde o século XVII, um produto central no sistema   sul-atlântico, com o rum servindo, ao lado do tabaco e do açúcar, como   meio de escambo para o tráfico de escravos. Culturalmente, as bebidas   serviram de veículos centrais tanto para a cultura religiosa – de Baco a   Cristo – como para o lazer profano.
 O livro é dividido em três partes: Antiguidade Clássica, Era Judaica, Cristã e Islâmica e Época Moderna. Por que essa divisão?
O livro é dividido em três partes: Antiguidade Clássica, Era Judaica, Cristã e Islâmica e Época Moderna. Por que essa divisão?Esta divisão busca contemplar a época do paganismo clássico no   Ocidente, ou seja, a Grécia e Roma panteístas, o período de advento das   três grandes religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo)   que possuem um tradição vinculada entre si e entre seus livros  sagrados  e, finalmente, o momento de emergência da sociedade moderna,  com suas  características de globalização e de revolução científica.
Através dos tempos, nas diversas culturas e religiões, e  mesmo  dentro delas mesmas, as bebidas alcoólicas e seus efeitos são  encarados  de formas diferentes, da sacralização ao veto completo.  Poderia citar  alguns extremos?
As bebidas alcoólicas vão da sua divinização, dos cultos pagãos de   Dioniso/Baco ao uso litúrgico no judaísmo e cristianismo, a uma   condenação como principais fontes da tentação demoníaca ou dos prazeres   carnais, como ocorre entre os espartanos na Grécia antiga, no islamismo   ou numa parte expressiva do protestantismo contemporâneo que passou a   defender a proibição como meio para se obter uma sociedade totalmente   abstinente.
Qual a sua opinião sobre a proibição absoluta do consumo de   bebidas alcoólicas? Sua visão se aplica também a outras substâncias? 
As proibições, seja de bebidas alcoólicas ou de outras substâncias   psicoativas, são mecanismos repressivos de tipo totalitário, pois buscam   fazer do Estado o controlador e modelador da vida íntima das   populações, buscando impor a abstinência total e compulsória como ideal   de sociedade. Esse ideal é não apenas irrealizável como indesejável,   pois pressupõe uma tutela estatal completa sobre o direito de livre   escolha e sobre os estilos de vida e as práticas corporais.
O que pode ser considerado temperança ou moderação? Existe  alguma  sociedade, religião ou cultura que domine essa qualidade ou os  excessos  estão invariavelmente presentes?
A moderação ou temperança tem sido um ideal ético, estético e   dietético de boa parte das tradições religiosas, filosóficas e médicas.   Seu ponto ideal é a equidistância dos extremos, sendo um deles o  excesso  e o outro a carência. Assim, a abstinência também é um excesso.
Sua formulação vem dos filósofos clássicos como Platão e Aristóteles,   passa pelo Cristianismo e chega aos expoentes do Renascimento e da   Ilustração, compondo, assim, uma rica tradição que busca ordenar os   comportamentos de risco por meio da autoeducação dos cidadãos que devem   buscar os seus próprios limites num processo de autoaprendizado   espelhado pelo exemplo dos seus parceiros sociais.
As sociedades e culturas podem ajudar os indivíduos a se  manter  próximos do ponto de equilíbrio? Normas, regras, leis e  etiquetas têm se  mostrado eficazes?
Sim, as normas e etiquetas são, em geral, mais eficazes do que as   leis em relação a condutas pessoais e corporais, pois o consentimento   público é mais convincente do que a coerção estatal. De gregos a árabes,   de romanos a persas, os usos das bebidas foram regidos por normas   éticas, estéticas e médicas, mais do que por leis impositivas.
As sociedades posteriores à Revolução Industrial viram, entretanto,   um novo ordenador das condutas, que é o mercado e suas injunções, se   tornar o foco da incitação a um consumo excessivo de tudo, levando a   padrões desequilibrados que respondem a necessidades de lucro   amplificadas pela técnica insidiosa da propaganda. Nesse universo   capitalista, as mercadorias se apossam dos indivíduos, levando-os a uma   hipertrofia de consumos compulsivos que desafiam as regras e normas da   medicina, do equilíbrio e até mesmo do bom senso.
Em outros sites:
Imagem da capa: Alegoria do Sabor, de Jan Brueghel, o Velho, 1618
 
 
 
 
 
 
 
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