sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Psicoscópio: olhando para o transe

Por: Fernando Beserra
Fonte: Hempadão - Portas da Percepção


Hoje no Portas da Percepção vamos falar de mais assuntos tabu: êxtase e transe. Mas, por que diabos, falar de transe? Ora, nada mais normal, na medida em que usuário de enteógenos comumente tem experiências extáticas que relatam como iluminações súbitas e descidas ao Hades. Estas experiências “místicas” foram interpretadas ao longo da história, em diversas partes do globo terrestre, de formas bastante diversas. Mais do que isso, serviram a finalidades distintas.


Entre o incrível e o patológico, a saída da percepção habitual era considerada em algumas tribos como uma saída da alma do corpo, sendo o corpo invadido por outros espíritos, bons ou maus. De acordo com os índios yaruros da Venezuela quando os xamãs saíam de seus corpos, voando em direção à terra dos espíritos, deixavam atrás de si uma casca da personalidade, servindo esse resíduo de canal de comunicação que eles estabelecem com os poderes sobrenaturais. Já o cristianismo tradicional perseguiu as formas de transe, levando-as a rituais de exorcismo.

O fato é que a possessão já ocorreu em distintas realidades, mesmo políticas. Se, por um lado, o transe era um veículo extático dos xamãs, tantas vezes marginalizados, ou, em muitas sociedades, uma das únicas formas de resistência das mulheres ao patriarcado, por outro, o transe também já serviu para reiterar a ordem dominante. Em algumas sociedades, portanto, o xamã se confundia com o líder soberano da aldeia, e, quanto mais soberano, mais vil e cruel. E, quanto mais cruel, menos permitia que outras pessoas entrassem em transe, já que apenas ele poderia ter contato com realidades extra-mundanas que, em última análise, só serviam para reforçar seu poder.

 
As Portas da Percepção, portanto, foram bem vigiadas em períodos da história onde uma única forma de verdade pode ser digerida. Para criar descrédito aos psiconautas, aos que alcançam estados extra-ordinários através do uso de psicodélicos, políticos e gurus repetiram sistematicamente que isso se tratava de “religião instantânea”, portanto, sem valor, superficial e efêmera. Este julgamento, é claro, esta plenamente ligado à lógica protestante de que só é possível alcançar a graça através do trabalho (tripalium) longo, doloroso, árduo, ou, dizendo de outro modo, através do sofrimento, na mimese de Cristo.

 
Segundo Ann Shulgin, esposa de um dos maiores químicos dos psicodélicos, que apresentaremos num post vindouro, o uso de psicolíticos (enteógenos) está relacionado a vários distintos estados como alegria, prazer, experiência religiosa, sensações alteradas, etc. A nossa visão de que apenas um deles é possível deve-se a nossa típica lógica ocidental “ou-ou”, quer dizer, acreditamos que apenas é possível “ou uma coisa” ou outra, tratando diferentes elementos como opostos absolutos. Na prática, sabemos que a lógica clássica não se adapta a experiências invulgares de consciência.

 
Para finalizar nosso papo de hoje, fica fácil começarmos a identificar na contemporaneidade quem está de qual lado, ou não? Enquanto Gideon procura criar redes de poder reacionário, indo contra a diferença e a alteridade, reforçando seu poder, outros procuram, através dos psicodélicos, democratizar a si mesmos e ao mundo, tentando tornar este último um lugar de acolhimento da diferença, pois, afinal, por trás dos véus de Maia, estamos todos inter-ligados.

 
Cabe uma frase de F. Nietzsche, para que tomemos cuidado, e, ainda mais, para aqueles que procuram de qualquer modo achar bodes expiatórios para se auto-promoverem, pois podem encontrar no espelho o diabo que imaginavam ver no outro:

 
Aquele que luta com demônios deve acautelar-se para não tornar-se um também, quando se olha muito para o abismo, o abismo olha para você.

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