Um adeus ao mestre

Por Coletivo DAR

Glauco Villas-Boas, 53, foi assassinado dia 12 de maço, junto com seu filho Raoni, de 25 anos, em circunstâncias ainda não plenamente compreensíveis para todos nós. Ele deixa um enorme vácuo na produção de tirinhas e na produção de cultura neste país. Um vácuo ainda maior, incomensurável, fica dentro das pessoas que o conheciam de perto, seus familiares, amigos, colegas de profissão e a mulher e filhos, e também, mãe e irmãos de Raoni. A esses dedicamos todo nosso sentimento.

As dimensões da tragédia são grandes. É difícil encontrar justificativas físicas, metafísicas ou de qualquer ordem possível para mortes estúpidas, provocadas por armas de fogo de fácil acesso, e que só servem para aumentar nossa indignação e tristeza.

Muitos de nós, membros do DAR, aprendemos a gostar de quadrinhos lendo o Geraldinho na Folhinha, não aprendemos direito, mas bem, demos o salto de qualidade da Turma da Mônica e da Turma do Arrepio e de outras Turmas afins. Depois fomos (re)formados pela invejável geração que produziu os três amigos e nunca deixamos de acompanhar o que estes três amigos, Laerte, Angeli e Glauco, faziam diariamente na cabeça desta nação, com seu humor afiado, socialmente consciente, mas ainda assim irreverente, provocador.



Se Bob Dylan ficou conhecido (apesar de não ter sido) como o cara que apresentou a maconha aos Beatles, o mesmo pode se dizer de Glauco com a geração dos anos 80 do quadrinismo. Ele tinha um traço único, caracteristico e simples. Angeli disse hoje que foi o Glauco que tirou a caretice dessa geração, ainda focada na justa luta contra a ditadura e pela redemocratização, mas até então insuficiente prolífica na tarefa de produzir uma arte verdadeiramente elevada e questionadora, como a que somos brindados hoje em dia. Glauco em seus primeiros quadrinhos, também fazia do seu humor uma importante ferramenta de luta, contra a censura e a ditadura, prova disso são seus primeiros quadrinhos premiados no Salão de Piracicaba no fim dos anos 80.

Glauco retratou, como poucos, o mundo das drogas. Junkies, traficantes, cineastas. Até o célebre Geraldão andava com a seringa dependurada em seu nariz, mas ainda assim, feliz. Um de seus personagens mais recentes, o Faquinha, era uma imagem pungente do “menó abandonado”, largado na grande cidade, fugindo da polícia, negociando com governantes e tomando conta da favela pra vender bosta de vaca pra classe média. Não dava também pra não ler o Nojinsk, muito louco de ópio e haxixe e sempre fugindo do exército norte-americano. Afinal, para transformar uma realidade, é necessáro aprender a rir com ela.

Os psicodélico Ozetês, comendo cogumelos de Netuno e viajando pelas galáxias, o viciadaço Doy Jorge, mostrado em sua complexidade mas sem estigmas. O viciado não era um perdido, algo a se combater per se, senão mais um tentando sobreviver nesse mundo. Bagulhão, um de seus personagens menos conhecidos, também vivia as voltas com a lei, apenas tentando fumar seu baseado, assim como o cacique Jaraguá, que chegou em São Paulo fazem 500 anos e conta histórias a partir de seu cachimbo, que as vezes faz chover.

Líder religioso de um culto ayhuasqueiro, foi um dos responsáveis pela popularização do culto do Santo Daime entre os paulistanos. Compositor de diversos hinários, será sempre lembrado por essa comunidade, em especial, a Céu de Maria, que ajudou a fundar e disseminar os ensinamentos de Mestre Irineu, figura central no culto do Daime.

Em nome do seu legado no campo da Arte Sequencial, dos psicoativos, do Daime e de uma cultura de paz, não podemos deixar que os tempos sombrios que se seguem às tragédias sejam capazes de influenciar no aumento do preconceito contra o uso de farmácos, contra os que participam desta religião, como fizeram recentemente as revistas Época e Veja, assim como outros grandes meios de comunicação. Tampouco devemos concender um centímetro em posicionamento proto-fascistas justiceiros que emergem nessas horas. É tempo de ter paz, serenidade, e não buscar mais violência.

Vivemos uma sociedade doente, contaminada pela violência e suas armas, pela corrupção e pelo lucro inescrupuloso. É necessário repensar a proibição e a ilegalidade da produção, do comércio e da distribuição de drogas. A ilegalidade de uma atividade econômica tão lucrativa, através do fomento à necessidade de violência e à demanda por armas, facilita o acesso da sociedade às armas de fogo. Enquanto o povo estiver armado não cessarão mortes estúpidas, não deixarão de morrer pessoas de significante contribuição à nação e continuarão morrendo mulheres e homens de bem, cidadãos exemplares. O Coletivo DAR lamenta profundamente a morte de Glauco.

Geraldão, Geraldinho, Doy Jorge, Cacique Jaraguá, Bagulhão, Ozetês, Nojinsk, Glauquito, Dona Marta, Casal Neuras e nós, os que sobramos, ficamos mais orfãos.