terça-feira, 2 de março de 2010

Cannabis pode realmente causar esquizofrenia?

Cannabis pode realmente causar esquizofrenia?


Dartiu Xavier da Silveira


Transcrito de: Xavier da Silveira, Dartiu. Moreira, Fernanda Gonçalves. Panorama Atual de Drogas e Dependências. São Paulo: Atheneu, 2006, pgs. 96-7.


Uma parcela significativa dos psiquiatras clínicos tem em sua casuística pelo menos alguns casos de psicose induzida ou desencadeada pelo uso de cannabis. Algumas vezes estas configuram situações de difícil manejo clínico e nos remetem a refletir mais profundamente sobre a associação entre psicose e o uso de substâncias psicoativas. Infelizmente os poucos estudos atualmente disponíveis na literatura sobre o tema ainda são controversos. É inegável que o uso de qualquer substância psicoativa sempre envolve algum nível de risco. Aliás, é a partir desta constatação que vem sendo desenvolvidas, nas últimas décadas, estratégias de redução de danos direcionadas sobretudo àquelas indivíduos que não conseguem se abster de consumir drogas. Cabe aqui ressaltarmos que os modelos de tratamentos disponíveis não conseguem tratar sequer a metade dos dependentes químicos que nos procuram. É sobretudo para esta maioria de dependentes químicos que não conseguimos tratar que se dirigem as intervenções de redução de danos. Nesse sentido, a proposta holandesa de tolerância com relação ao uso de cannabis de forma alguma decorre de algum tipo de simpatia especial deste povo com relação às drogas.




Trata-se apenas de uma estratégia, aliás bem-sucedida, de afastar o grande número de usuários de cannabis do fácil acesso a drogas potencialmente mais danosas. Ainda que vez ou outra a imprensa leiga noticie o contrário, a política holandesa na área de drogas pode ser considerada bem sucedida em termos de saúde pública. Note-se que embora possamos identificar um grande número de trabalhos científicos focalizando conseqüências danosas do uso de substâncias psicoativas, a maior parte destes trabalhos trazem problemas metodológicos consideráveis. Ainda que reconheçamos os riscos relacionados ao uso de substâncias psicoativas e ainda que sejam incontestáveis os graves problemas advindos deste uso, a existência deste tipo de literatura científica, supostamente confiável mas ao mesmo tempo tão vulnerável a uma análise mais minuciosa, nos leva a questionarmos grande parte do que é publicado sobre o tema. Recentemente, a imprensa leiga vem causando verdadeiro pânico ao divulgar trabalhos científicos que sugerem que o uso de cannabis pode causar esquizofrenia. O mais alarmante é que diversos destes trabalhos são publicados em periódicos considerados particularmente sérios pela comunidade científica. Mais especificamente, nos causa surpresa a maneira pela qual determinadas idéias são encadeadas levando o leitor a conclusões questionáveis. Exemplificando, podemos particularizar esta questão ao tomarmos afirmações tais como “No nível populacional a eliminação do uso de maconha poderia ocasionar uma redução de 7 a 13% na incidência da esquizofrenia”. A partir do conhecimento de que se dispõe sobre psicopatologia, reiterado pela experiência clínica acumulada no Ocidente no decorrer do último século, nos soa no mínimo estranho quase que atribuir à maconha a gênese da esquizofrenia. Apesar dos próprios autores dos artigos dos artigos destacarem alguns dos problemas metodológicos de seus trabalhos, ao mesmo tempo incorrem em conclusões duvidosas. A própria quantificação da suposta possibilidade de redução da incidência de esquizofrenia através da supressão do uso de maconha não passa de uma inferência baseada na inversão de um cálculo matemático simples. Nos últimos 30 anos, o uso de cannabis aumentou substancialmente entre populações jovens. Se a relação entre cannabis e esquizofrenia fosse realmente de causalidade, deveríamos ter constatado igualmente um aumento de incidência de esquizofrenia entre 1970 e os dias de hoje. Entretanto, estudos populacionais sugerem que a incidência de esquizofrenia vem se mantendo estável ou até mesmo apresentando discreta diminuição no referido período. Assim sendo, tais afirmações dos referidos autores não deveriam ser tomadas como constatações científicas, mas, apenas, na melhor das hipóteses, como algo a ser investigado através de outros estudos ainda a serem desenvolvidos. Alternativa àquela hipótese, não sabemos se os usuários de cannabis que se tornam psicóticos teriam tido outro desfecho se não houvesse utilizado a droga. Não teria sido também possível supor que o uso da maconha poderia representar tão-somente um estressor e que, na sua ausência, outros estressores muito provavelmente acabariam por também desencadear um quadro psicótico naqueles pacientes? Ou ainda, que o uso de maconha seria apenas um “marcador” de uma outra variável de confusão possivelmente envolvida naquela associação psicose-droga? Ou mesmo, que os fatores que posteriormente levaram à eclosão de uma psicose já estivessem presentes anteriormente e que poderiam ter sido responsáveis por comportamentos desadaptados entre os quais o próprio uso da cannabis? Todas estas possibilidades são igualmente apenas hipóteses especulativas que de forma alguma podem ser tomadas como evidências científicas. Obviamente todos sabemos da grande distância que existe entre a constatação de uma associação entre dois fenômenos e o estabelecimento de uma relação de causa e efeito entre os mesmos. O que mais impressiona é como uma série de pesquisas com resultados controversos acaba por ser usada para se transmitir uma posição ideológica que de forma alguma é baseada em evidências. Não se trata aqui de fazer qualquer defesa do consumo de drogas, mas de defender uma ciência menos enviesada ideologicamente.



Referências:



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