domingo, 13 de junho de 2010

Espitirualidade enteogênica como um direito humano


Espitirualidade enteogênica como um direito humano

O ensaio que se segue é um trecho editado do livro A Evolução Enteogênica: Psicodélicos, Consciência e o Despertar do Espírito Humano, de Martin W. Ball.

Traduzido por Mirador e postado originalmente em plantasenteogenas.org

O verdadeiro coração de qualquer religião ou tradição espiritual é a experiência espiritual direta. É a partir da experiência imediata do sagrado que as tradições surgem, crescem e assumem uma vida própria como instituições e sistemas de crença. No entanto, sem a experiência inicial - inspiração que dá origem à tradição, há muito pouco para se estabelecer as bases de uma tradição.

Não é difícil ver que esta proposição básica é verdadeira. Nas "grandes" tradições do mundo, ou seja, as mais populares e bem estabelecidas tradições, encontramos pessoas que estiveram profundamente imersas na experiência espiritual direta. Na tradição judaica, encontramos figuras majestosas como Moisés, que conversou com Deus sobre a montanha, recebendo mensagens e instruções diretamente do além. Mais tarde, na tradição cristã, temos a figura de Jesus, percebendo e experimentando a sua própria divindade. Adiante, encontramos Mohammed na tradição islâmica, com seu voo extático ao céu para comungar com Deus.

No Oriente, aparecem muitos outros exemplos. No budismo, temos a figura mística do Buda, iluminado por meio da meditação sob a figueira. Na tradição taoista, encontramos o sábio Lao Tzu e sua obra, o Tao Te Ching. As tradições hindu e Jainista também possuem inúmeros e significativos santos e místicos, todos inspirados por suas experiências pessoais de iluminação.

A partir das experiências diretas dos místicos, xamãs, sábios, santos, profetas e também do povo santo, provêm os ensinamentos e práticas que são codificados como tradições religiosas e espirituais e, em seguida, ensinadas e transmitidas através das culturas e da história. Em seu núcleo central, encontramos indivíduos inspirados que vislumbraram e sentiram algo de sagrado que lhes impactou de forma tão profunda que se sentiram compelidos a compartilhar suas experiências e ensinamentos com os outros, proporcionando-lhes um caminho e uma metodologia para experimentarem o sagrado por si mesmos.

Nas leis do EUA, a religião tem sido amplamente definida de acordo com os conceitos de crença e prática. Vinda da tradição ocidental e cristã, onde a crença e a prática correta de adoração foram esmagadoramente enfatizadas sobre qualquer forma de experiência espiritual direta, a lei dos EUA vê "liberdade religiosa" como se referindo principalmente à liberdade de crer e, secundariamente, com a liberdade de praticar. Segundo a lei estadunidense, todos nós somos livres para acreditar no que quisermos. Ninguém pode nos forçar a acreditar em qualquer dogma ou doutrina religiosa particular, e se quisermos, podemos não acreditar em nada. Quanto à prática, nós somos livres para as práticas de nossas religiões, contanto que essas práticas não interfiram com os interesses maiores do Estado, viole as leis, ou invada a liberdade dos direitos constitucionais alheios.

No entanto, algo que falta na nossa proteção jurídica é o reconhecimento da importância da experiência espiritual direta em si. Somo livre para acreditar ou praticar o que quer que desejemos, mas isso não significa necessariamente que podemos ter qualquer tipo de experiência mística ou espiritual. Na verdade, dada a desilusão espiritual geral que assola atualmente o Ocidente, não é exagero dizer que toda a ênfase sobre a regulamentação de nossa crença e prática religiosa foi responsável por nos separar de qualquer tipo de experiência espiritual direta, o que explica a forte atração que os ocidentais sentem por tradições orientais e indígenas, onde a ênfase está na experiência. Nós, no Ocidente, somos famintos por experiências espirituais e por um reencantamento da nossa experiência, visão de mundo e autoconhecimento.

Muitos ocidentais tentaram encontrar este reencantamento não somente com as tradições orientais e indígenas, mas também através do uso de drogas psicodélicas e enteógenas. No entanto, esses agentes de experiência e despertar espiritual são em grande parte ilegais no ocidente, fazendo com que aqueles que usem plantas visionárias para encontrar a sua conexão com o sagrado se tornem criminosos e bandidos. Dizem-nos que somos livres para acreditar que as medicinas visionárias são sagradas e um tipo de conexão com o divino, mas não estamos autorizados a praticar, enquanto a nossa prática está em conflito com outras prioridades legais, tais como a chamada "guerra contra as drogas".

Como seria se não apenas crença e prática fossem protegidas por lei, mas também a própria experiência espiritual? O que eu gostaria de discutir é que experiência espiritual direta é o aspecto mais íntimo da nossa liberdade religiosa ou espiritual e é fundamental para nossa capacidade de explorar livremente nossa própria natureza. Em resumo, o argumento principal aqui é que é hora de reformular a discussão. Experiência espiritual direta deve ser considerada um direito humano fundamental, e qualquer lei que contrariar esse direito deve ser decididamente descartada como antidemocrática e responsável por cercear a nossa liberdade básica como seres espirituais.

A crença é um fundamento decididamente pobre para basear a construção de uma tradição religiosa ou espiritual, especialmente no mundo moderno. Muitas das crenças sobre as quais são construídas as tradições ocidentais não suportam bem o crivo do racionalismo e da investigação científica, especialmente quando considerados em sua forma dogmática e fundamentalista. Boa parte do debate em curso no Ocidente sobre ciência versus religião é colocado sobre este problema de crença e promove o pensamento superficial em ambos os lados. Os líderes religiosos descartam cegamente evidências científicas, quando estas entram em conflito com suas crenças mais caras, vestindo viseiras imaginárias sobre seu pensamento racional, e os cientistas podem ser igualmente ingênuos, igualando a religião com o pensamento mitológico e supersticioso e, portanto, julgado-a em última análise como irracional e irreal. Ambos os lados deste debate em geral não percebem o fato de que a experiência espiritual em si não precisa ser baseada em alguma crença, e que há na verdade, muitas semelhanças entre as reivindicações dos místicos, xamãs e cientistas sobre a natureza da realidade, quando eles estão tratando de suas experiências diretas ao invés de apenas repetir desgastados dogmas e crenças há muito acalentadas sobre a realidade e o caminho do mundo.

A prática não é necessariamente melhor como fundação para uma tradição religiosa ou espiritual. Pode-se praticar - ir à igreja, adorar, orar, etc. - tudo que se quiser, mas sem uma clara orientação para saber como atingir estados de consciência espirituais e cultivar uma relação direta com o sagrado, pode-se simplesmente "ir com a maré" por uma vida inteira sem nunca se ter tido uma experiência espiritual genuína. Especialmente no nosso mundo desencantado, liturgias religiosas e formas de ritual podem se tornar práticas vazias, fornecendo uma estrutura social para a prática religiosa, mas muito pouco no caminho da experiência espiritual real. E mesmo que um ocidental consiga ter uma experiência espiritual em uma tradição religiosa comum, é muito provável que alguma autoridade esteja ditando o que se deve crer sobre a experiência. E se o indivíduo não ajustar a sua experiência em dogmas pré-estabelecidos, em seguida, ele se arrisca a ser tachado de herege ou infiel, de qualquer forma.

Mas o que aconteceria se fôssemos realmente livres para escolher como queremos explorar a nossa natureza espiritual; livres das limitações de crenças dogmáticas, rituais litúrgicos rigorosos, e leis paternalistas? E se pudéssemos de nossa livre vontade, decidir seguir o caminho da espiritualidade enteogênica e utilizar as sagradas medicinas visionárias para melhorar e explorar a nossa natureza espiritual e cultivar nossas experiências espirituais como quisermos? Como seria a nossa sociedade? Como as coisas pareceriam se tivéssemos a soberania sobre nossas próprias mentes?

Muitos praticantes religiosos contemporâneos afirmam que a espiritualidade / prática religiosa enteogênica não é verdadeira. Infelizmente, tais reivindicações refletem uma ignorância relativamente profunda da cultura, religião e história humana. Os estados alterados de consciência, induzidos ou não por plantas, têm sido fundamentais para o desenvolvimento de tradições espirituais e religiosas desde a aurora dos tempos. Sonhos, transes, visões e estados extáticos formaram o núcleo de boa parte do que tem sido transmitido até nós em forma de tradições religiosas ao longo da história, e muitos desses estados alterados foram induzidos por plantas visionárias. Este é um fato inegável da história.

Pode-se olhar em qualquer lugar do mundo, em qualquer ponto da história, e encontrar o uso das plantas sagradas para cultivar a experiência espiritual direta entre xamãs e místicos. É bastante seguro dizer que os seres humanos têm sempre feito uso de plantas visionárias, onde quer que estejam disponíveis, para melhorar sua experiência espiritual. Em muitos aspectos, o uso de plantas visionárias e a "religião" tem sido sinônimos, especialmente onde a ênfase é colocada na experiência espiritual direta, em vez de nos fundamentos mais fracos de fé e prática. De qualquer forma, em várias religiões que operam atualmente, está claro que suas origens encontram-se na experiência direta e imediata dos xamãs e místicos que inspiraram as religiões, em primeiro lugar. Em suma, a experiência mística e xamânica é ao mesmo tempo anterior e precedente da própria religião. Sem os estados alterados de consciência e experiências espirituais dos xamãs e místicos, a religião, como nós a conhecemos, simplesmente não existiria.

As religiões no Ocidente têm, de maneira geral, temido os xamãs e as práticas xamânistas. O misticismo no Ocidente não tem, necessariamente, se saído muito melhor, mas em certa medida, é tolerado, embora a Igreja Católica tenha marcado alguns místicos como hereges e as tradições de mistério tenham sido rejeitadas e denegridas. Xamãs foram recebidos com hostilidade, no entanto, muitas vezes sendo o alvo de zelosos missionários cristãos. Em toda a Europa e Novo Mundo, xamãs incontáveis, bruxas e curandeiros foram abatidos nas mãos dos cristãos, empenhados em reprimir qualquer vestígio da experiência espiritual direta ou práticas que pudessem estar em conflito com os ensinamentos da igreja cristã. Na Europa, milhares, senão milhões de mulheres que praticavam a "bruxaria" foram queimadas em fogueiras ou mortas. Nas Américas, os povos indígenas foram submetidos à brutalidade do genocídio, limpeza étnica, e ao assassinato intencional de seus líderes xamânicos. De acordo com o dogma cristão, por definição, os praticantes xamânicos tem de ser adoradores do diabo e, portanto, seus assassinatos eram justificados, juntamente com aqueles que os seguiam ou se recusavam a aceitar os ensinamentos, crenças e práticas cristãs.

Embora os xamãs e as tradições xamânistas tenham se saído melhor no Oriente, eles não ficaram livres da perseguição de outras religiões. Muitas tradições xamânistas foram incorporadas nas tradições religiosas orientais, como nas escolas mais tântricas do budismo e do hinduísmo, mas mesmo nestes casos, houve perseguição aos xamãs. Conforme o budismo tântrico se espalhou através da Ásia, os xamãs locais, que muitas vezes eram do sexo feminino, foram tratados como supersticiosos e ignorantes. Embora eles não fossem necessariamente mortos de imediato, já que os xamãs e curandeiros se encontravam nas mãos de missionários cristãos, suas práticas eram vistas como menos sofisticadas e avançadas do que as complexas tradições tântricas que eram amplamente dominadas pelos machos. Só agora é que certas áreas da Ásia, na ex-União Soviética, estão readotando o xamanismo, como na República de Tuva e na Mongólia, onde o xamanismo era pesadamente missionizado pelos lamas budistas machos.

Não apenas os cristãos foram intolerantes com os xamãs e outras tradições espirituais de cura similares no Ocidente. Com o advento do Iluminismo e da Revolução Científica, outras atitudes desprezíveis e depreciativas se tornaram proeminentes contra os xamãs e a experiência espiritual em geral, com efeitos que nós estamos vivendo ainda hoje. De muitas maneiras, a Revolução Científica foi uma reação à escolástica medieval dos teólogos cristãos, onde todo o conhecimento e proclamações da verdade tinham de ser incluídos sob o dogma cristão. Baseando-se em grande parte na filosofia aristotélica e platônica, os teólogos cristãos criaram os seus modelos da realidade em conformidade com os postulados filosóficos e teológicos pré-existentes, ao invés de deixar que a evidência decidisse pelos modelos. Por exemplo, muitos líderes religiosos se recusaram a olhar através dos telescópios de Galileu, pois a observação direta da lua revelava diversas características, conflitantes com a imagem de uma esfera perfeita incorruptível, como ensinado pela filosofia aristotélica e cosmologia, entrando assim em contradição com a sua visão do mundo e do universo. Cientistas e pensadores racionais, por outro lado, desenvolveram o ponto de vista relativamente novo de que as observações sobre a realidade devem informar os nossos pontos de vista sobre a realidade, e não necessariamente o contrário. Se a Lua é observada como ser imperfeito, é a teoria de que a lua é incorruptível que tem que mudar, e não os dados devem ser negados e escondidos, como era a prática da Igreja quando fatos observáveis contradiziam a sua doutrina e teologia.

É preciso também considerar as origens da ciência esotérica ocidental, para compreender a sua distinção tanto da Igreja quanto das tradições folclóricas da Europa. Muitos dos primeiros cientistas também foram magos, astrólogos e alquimistas, como foi o caso de John Dee e Isaac Newton, entre outros. Alquimia foi uma prática tanto interna quanto externa que buscava correspondências entre a manipulação de metais e materiais externos e a progressão do despertar espiritual no interior do próprio alquimista. Foi a alquimia que, eventualmente, deu origem à química, assim como a astrologia deu origem à astronomia e a filosofia natural deu à luz a mecânica, física e biologia. Assim, muitas das raízes da ciência foram encontradas dentro das tradições esotéricas e das sociedades secretas ocidentais, que provavelmente eram quase que exclusivamente a ocupação de homens abastados das sociedades européias.

Algo muito importante é que, durante o tempo da Inquisição, quando a Igreja Católica estava ocupada exterminando os curandeiros locais, os magos, alquimistas e astrólogos eram em geralmente deixados intactos e incólumes. Uma clara distinção foi feita entre os "altos" magos e outros praticantes esotéricos que muitas vezes lecionavam nas universidades medievais e aconselhavam os chefes de Estado e aristocracia, e os "baixos" curandeiros populares, parteiras, "bruxas" e outros praticantes mágicos locais, em sua maioria composto por mulheres. Em suma, o patriarcado europeu foi claramente focado em remover os praticantes do sexo feminino não cristãos da prática espiritual direta, mas foi muito menos preocupado com os machos de elite, que serviam à estrutura patriarcal de poder existente.

Assim, a elite masculina sobreviveu à Inquisição e, através de várias transformações, tornou-se líder da revolução científica. No entanto, com o crescente sucesso da "ciência" e do "método científico" de observação cuidadosa, acumulação de dados e formação de teoria e revisão, os aspectos mais subjetivos da prática da magia foram deixados de lado e acabou sendo relegada à subjetividade da "religião", com o reino da objetividade deixado para a ciência. Com o filósofo René Descartes, temos uma clara articulação desta visão através de sua filosofia dualista, separando claramente a mente do corpo e o espiritual do físico. Aqui, todas as coisas espirituais; subjetivas e não físicas são dadas para a religião, já a observação de fatos materiais através da observação racional, pertencente à ocupação da ciência e da observação científica e sua construção de teoria.
O resultado foi que a racionalidade e a observação ficaram vistas não só como algo objetivo, verificável e, portanto, verdadeiro, mas também como distintos traços masculinos. Sob a lente científica, a natureza era vista como feminina e a mente masculina, racional, era vista como a melhor ferramenta para desvendar os segredos da natureza e proporcionar a dominação sobre a mesma. Nesse sentido, a comunidade científica reflete a mesma misoginia patriarcal da Igreja ao dominar as curandeiras folclóricas, tornando o feminino secundário e sujeito ao primado do masculino. E não só a natureza era considerada feminina, mas através da racionalidade masculina, os homens eram, em teoria, capazes de dominar e controlar a natureza, dobrando-a sob sua vontade.

Estamos ainda vivendo com os efeitos dessas forças da sociedade europeia, muitas centenas de anos mais tarde. Todo o debate da relação ou conflito entre "religião" e "ciência" ainda carrega as marcas dessa divisão original. A ciência é vista como forma objetiva de tratar as questões do que é físico / material, enquanto a religião, pelo menos segundo os cientistas, deve limitar-se ao não material e espiritual (que, segundo muitos cientistas, não existe realmente de qualquer maneira, então a religião é, portanto, estritamente mítica e imaginária, ou simplesmente uma função de crença e prática, sem conexão com a realidade factual observável). Assim, por um lado, temos a ciência factual e objetiva que produz conhecimento através de meios supostamente puramente objetivos, e por outro lado, a religião, crença subjetiva que não promove a experiência subjetiva enquanto favorece a adesão às suas crenças e práticas. Quando há um conflito entre as duas visões, como ocorre frequentemente, os membros das sociedades ocidentais são, basicamente, forçados a escolher lados neste debate inventado - tanto a verdade "objetiva" quanto a "crença subjetiva" saem vitoriosas, mesmo tendo poucos pontos em comum. Em suma, temos tanto "conhecimento" ou "fé", o primeiro baseado na objetividade e o posterior na fé cega.

Nenhuma posição deixa muito espaço para a experiência subjetiva. De acordo com o ponto de vista científico, as experiências subjetivas não podem ser objetivamente observadas e, portanto, não estão abertas para questões da verdade, construção de teorias, criação de modelos, ou qualquer um dos outros procedimentos padrão para a produção de "conhecimento". Sob este ponto de vista, uma pessoa pode reivindicar ter tido uma experiência espiritual poderosa, mas isso ainda é subjetivo e, portanto teoricamente não receptivo à visão científica do mundo ou sistema prático. Por outro lado, qualquer experiência espiritual subjetiva que não se encaixe dentro dos limites da crença ou doutrina religiosa proscrita é relegada para o caixote de lixo da heresia, desilusão, ou adoração ao diabo.

Estas opiniões foram mantidas universalmente no Ocidente até há relativamente pouco tempo. Nas últimas décadas os ocidentais têm prestado muito mais atenção às práticas, conhecimentos e técnicas de praticantes espirituais, como os xamãs, os iogues, os tantrikas, entre outros. É cada vez mais claro que os xamãs, por exemplo, detém um vasto repositório de conhecimentos relacionados com quase todos os temas supostamente "científicos", tais como propriedades farmacológicas de plantas, conhecimento ecológico, conhecimento astronômico, biologia, medicina entre outros. Embora ainda haja alguma rejeição do conhecimento xamânico por racionalistas e objetivistas do mainstream, em geral, mais respeito pelo conhecimento tradicional tem sido geralmente demonstrado dentro da sociedade.

O mesmo é verdade para tradições espirituais que enfatizam a cultura da experiência espiritual pessoal. Desiludidos com os ensinamentos ocos das religiões ocidentais que enfatizam a crença em geralmente irracional em face de supostos fatos científicos, muitos ocidentais voltaram-se para as religiões orientais em busca de experiência e propósito espirituais genuínos. O taoismo, budismo, hinduísmo, yoga, tai chi, chi gong, e muitas outras práticas orientais têm encontrado praticantes dispostos e preparados no Ocidente, que encontram nessas tradições uma ênfase diferente do que aquilo que têm sido oferecido no Ocidente. Aqui, a ênfase está em que cada indivíduo praticante chegue a suas próprias realizações espirituais através de uma prática de meditação ou exercícios espirituais. Embora diversas crenças ainda possam ser ensinadas em conjugação com uma determinada tradição, a ênfase é esmagadora na experiência direta em si.
Sociedades ocidentais ainda têm um longo caminho a percorrer na aceitação de estados subjetivos de consciência e práticas espirituais pessoais. É muito mais provável que um cientista ocidental queira colocar um meditador budista em um dispositivo de varredura cerebral do que se submeter a um regime de meditação e contemplação. A ênfase ainda é colocada no lado material da equação, com a neurobiologia e a neuroquímica budista como o foco da investigação científica - e não no valor da experiência da meditação e da prática em si.

O mesmo é verdadeiro em grande medida para a avaliação do conhecimento xamanista pela ciência ocidental. As companhias farmacêuticas estão se esforçando para aprender a sabedoria das ervas dos pajés, mas poucos estão realmente tentando aprender os métodos de estados alterados de consciência através dos quais os xamãs conquistaram duramente sua sabedoria. Enquanto o Ocidente está realmente reconhecendo que a sabedoria xamanista e tradicional não pode ser universalmente reduzida a mito, lenda e a irracionalidade pré-científica, os métodos e as técnicas dos xamãs ainda são vistos como subjetivos e não científicos e, portanto, não necessariamente dignos de emulação. O resultado é que, enquanto o lado físico e prático dos seus conhecimentos está sendo amplamente aceito e apreciado neste momento, seus métodos são ainda considerados muito subjetivos para serem considerados científicos.

No entanto, nós podemos ver uma mudança em direção ao valor da experiência espiritual direta. Por terem sido extremamente carentes nesse quesito dentro das tradições ocidentais contemporâneas, os ocidentais têm procurado as suas fontes de experiência espiritual direta em outros lugares. Todavia, mesmo entre aqueles que procuram seguir um caminho místico ou xamânico, ainda há o temor e a difamação das medicinas visionárias como ferramentas espirituais genuínas. Curiosamente, muitos praticantes xamânicos contemporâneos ocidentais afirmam que o xamanismo verdadeiro não usa plantas visionárias, apesar do fato histórico e cultural de que as medicinas visionárias são e têm sido utilizados por inúmeras culturas xamânicas ao redor do mundo. Muitos "praticantes xamânistas" do mainstream alegam que sua prática é "livre de drogas", que são substituídas pelo uso de "tambores xamânicos" e outras técnicas amplamente praticadas no estilo New Age, como visualização, imagens guiadas, e assim por diante. Da mesma forma, as pessoas envolvidas nas tradições de meditação frequentemente proclamam que as plantas visionárias são "atalhos" ou "falsos despertares" e que somente através de anos dedicados à meditação e ao estudo pode-se ter uma genuína experiência espiritual ou despertar místico. Assim, em ambos os fluxos culturais, ainda há resistência às plantas e medicinas visionárias, apesar de seu lugar na história e contemporaneidade das culturas xamânicas.

O resultado é que, mesmo entre os chamados praticantes espirituais "alternativos", ainda há um viés bastante forte contra plantas e medicinas visionárias, às vezes até mais do que dentro da cultura geral, em esforços feitos por estas tradições alternativas para se distinguirem das práticas enteógenas "questionáveis". Assim, apesar da mudança cultural, os enteógenos ainda habitam o underground, como ferramentas espirituais no Ocidente e permanecem em grande parte ilegais em seu uso e, mesmo quando legais, ainda são vistos com desconfiança e tratados como algo ilegítimo. A espiritualidade enteogênica é vista como fictícia, imaginária e hedonista. Não é considerada um caminho espiritual real.

Quando se trata do uso espiritual das plantas visionárias, buscadores espirituais acham que não só têm que lutar contra a corrente dominante da história e da cultura ocidental, mas também têm que lutar contra leis restritivas e, muitas vezes discriminatórias relativas à utilização das plantas e medicinas visionárias. Desde que Timothy Leary e seus colegas de Harvard desencadearam o LSD no Ocidente, temos vivido com a repercussão de uma irracional, dogmática, e eu diria, inconstitucional "guerra contra as drogas”, que alcançou muitos dos medicamentos visionários sagrados em sua rede. Aqueles que buscam expandir seus horizontes, buscando a genuína experiência espiritual direta através de enteógenos têm que se arriscar, não só ao desprezo e punição social, mas também a ameaça de prisão e a perspectiva de perder tudo em suas vidas, incluindo as suas propriedades, famílias, postos de trabalho e lugar na sociedade local. A "guerra contra as drogas" tem colocado mais pessoas na prisão do que qualquer outro programa social e é a grande responsável pelo fato de os EUA terem a maior população prisional do planeta, com uma percentagem dos seus cidadãos atrás das grades maior do que qualquer outro país no mundo. Esta "guerra" Também tem sido utilizada para promover a repressão e as táticas intrusivas da polícia e é frequentemente utilizada como um meio de aprisionar populações minoritárias, tendo pessoas de cor como muito mais prováveis a serem presas por uso e posse de drogas do que os brancos. Embora seja provável que o caso da maioria dos presos por uso de drogas não tenham, necessariamente, a pretensão de utilizar estas substâncias para fins espirituais, é indubitavelmente verdade que alguns a tenham. Para algumas prisões, o caso é literalmente uma questão de liberdade religiosa, na medida em que eles estão sendo punidos por consumir o que na sua tradição é considerado um sacramento cerimonial.

Como pode ser esta a questão? Mesmo que queiramos punir as pessoas por usar drogas, por que é que o uso cerimonial e sacramental das plantas e medicinas visionárias é em grande parte ilegal? Por que a escolha individual de um sacramento não é uma atividade protegida por nossas leis? Porque não temos um direito juridicamente protegido para perseguir e cultivar a experiência espiritual direta da maneira que quisermos, contanto que nossas ações não causem nenhum dano direto a terceiros?

A partir do breve histórico das forças acima descritas, não é difícil ver que qualquer pessoa que queira usar um sacramento visionário no Ocidente, teria uma grande quantidade de inércia histórica, social e cultural para superar a fim de que sua escolha seja aceita pelas instituições do mainstream. Mas não é apenas a aceitação que estamos considerando aqui, e sim o reconhecimento jurídico real de um direito à prática de atividades espirituais legítimas de acordo com o julgamento individual. Naturalmente, as leis do nosso país [N. do T.: autor é estadunidense] decorrem da mesma corrente histórica que as nossas instituições científicas e religiosas, assim os pontos de vista da ciência e da religião são diretamente impactados pela maneira como concebemos as atividades constitucionalmente protegidas e como nós definimos quais categorias de escolhas merecem a proteção da lei.

Quando se considera as questões legais que cercam o uso sacramental de enteógenos, é fácil ver que a importância de cultivar a experiência espiritual direta não é levada em consideração. Pelo contrário, somos confrontados com questões de "crença" e "prática", e definições bastante estreitas do que caracteriza a liberdade no exercício de uma prática religiosa ou espiritual. Para entender como isso funciona na sociedade estadunidense contemporânea, vamos voltar e examinar algumas de nossas instituições e restrições jurídicas e ver como elas incidem sobre o direito de explorar a espiritualidade segundo o julgamento individual.

Comecemos com a Constituição dos Estados Unidos e a suposta liberdade que garante a todos os seus cidadãos. À medida que a Primeira Emenda diz o seguinte: "O Congresso não fará nenhuma lei com respeito ao estabelecimento da religião, ou proibindo o seu livre exercício." A primeira parte desta emenda aborda o fato de que os imigrantes europeus que vieram para os EUA muitas vezes vinham de países em que haviam religiões oficiais do estado, como a Igreja Anglicana da Inglaterra. Esta emenda foi criada para garantir que não haveria nenhuma religião oficial nos EUA (apesar das reivindicações de muitos evangélicos hoje de que os EUA é um país "cristão"). Em suma, se lê que o governo federal não pode impor a qualquer cidadão estadunidense a adesão a qualquer religião em particular, ou a qualquer religião. Nós somos todos livres para crer e praticar o que quisermos e não podemos ser compelidos a qualquer religião em particular, como foi o caso na Europa. A segunda parte limita a capacidade do governo de interferir com qualquer tradição religiosa que escolhamos integrar livremente, dizendo claramente que o governo não pode interferir com a habilidade de praticar qualquer religião escolhida. Essa emenda reflete imediatamente na experiência dos europeus imigrando para o Novo Mundo, muitos dos quais vieram especialmente em busca da liberdade religiosa devido à perseguição que enfrentavam em casa. Os EUA deviam ser a terra da liberdade religiosa, onde as pessoas pudessem acreditar e praticar o que quisessem de acordo com sua própria consciência e vontade.

O primeiro problema com esta emenda é que nos inspira a questionar o que define uma "religião". Religiões são geralmente entendidas como instituições que aceitaram crenças, práticas, rituais, hierarquias, textos sagrados, calendários cerimoniais, etc. Mas quase nenhuma ênfase é colocada na experiência espiritual direta quando se trata da definição de práticas ou experiências religiosas. Temos, portanto, uma visão um tanto restritiva do que constitui uma "religião" per se, ou o que deve ser tomado em consideração na definição ou reconhecimento de uma religião. Isso também levanta a questão de quem decide o que é aceito como uma "religião" ou não, tendo como resposta que é o próprio governo que decide o que satisfaz os seus critérios, apesar do fato de que o governo não fará nenhuma lei com respeito ao estabelecimento de religião. Embora seja verdade que o governo certamente absteve-se de obrigar a nossa fidelidade a qualquer religião em particular, também é verdade que é o governo que decide quais práticas e instituições merecem a designação de religião em primeiro lugar, o que poderia ser interpretado como "com respeito ao estabelecimento de religião".

Assim, a Primeira Emenda não é livre de problemas e nem tão clara com relação a proteção, como pode parecer. É ainda mais problemática quando se começa a olhar para as questões de "prática" espiritual em oposição a prática "religiosa". Isto é especialmente verdadeiro quando se considera o xamanismo e o misticismo. Nem xamãs e nem místicos precisam ser parte de qualquer religião em particular a fim de perseguir seus objetivos espirituais, e historicamente, este tem muitas vezes sido o caso no Oeste; xamãs e místicos têm sido propositadamente excluídos das nossas instituições e prática religiosa. Eles podem, portanto, constituir uma classe de praticantes espirituais que não estão participando de uma dada "religião", pelo menos não na acepção das leis dos EUA.

Se os xamãs e os místicos e suas práticas já caem um pouco fora da definição de atividades protegidas pelas leis dos EUA, só podemos imaginar o quanto mais difícil seria para um praticante solitário da espiritualidade enteogênica defender em julgamento que a sua prática deve ser protegida pela Constituição. Não só esta pessoa teria que argumentar o porquê de suas práticas poderem ser entendidas como "religiosas" em primeiro lugar, mas também explicar porque as leis criadas para proibir o uso ilegal de "drogas" deve ser desconsiderada, em alguns casos, a fim de proteger a "liberdade religiosa". Até a data, ninguém jamais argumentou com sucesso na corte estadunidense que a sua escolha pessoal para usar um sacramento enteógeno para cultivar a sua experiência espiritual pessoal é protegida pela Constituição. E a menos que examinemos cuidadosamente o que e como estamos protegendo, é improvável que alguém terá sucesso em fazer tal argumento ante o Supremo Tribunal dos EUA.

É minha opinião que a experiência espiritual direta deveria ser uma categoria de atividade protegida, e assim definido e delineado na Constituição dos EUA ou outros documentos políticos de caráter similar. E mesmo além dos EUA, proponho que seja escrito em uma declaração fundamental dos direitos humanos nas Nações Unidas, aplicável a todas as nações do mundo. Dado que a nossa experiência espiritual direta e imediata é o aspecto mais íntimo do nosso ser; talvez ainda mais íntimo que o nosso corpo físico, nosso direito a experiência espiritual direta deve ser também protegido, e não apenas o direito de participar em uma religião de nossa escolha. Há uma diferença entre ser espiritualmente consciente e ativo e ser religioso, mas não temos absolutamente nenhuma proteção para a experiência espiritual, mesmo que nossa Constituição proteja a liberdade religiosa. E mesmo protegendo a liberdade religiosa, existem outras considerações que são jogadas na mistura de modo que nunca se pode assumir que apenas porque uma prática ou crença é parte de uma religião, a mesma será protegida, como será demonstrado na análise do caso da Suprema Corte dos EUA a seguir.

Antes de olharmos para o Supremo Tribunal, entretanto, é preciso ser dito que se a experiência espiritual direta fosse uma categoria de atividade protegida, então assim também o seria o uso espiritual dos sacramentos enteógenos. Qualquer argumento de que o uso de enteógenos não pode ser espiritual está em clara contradição com as provas esmagadoras da história do mundo e das culturas humanas. Só alguém ignorante a respeito do papel dos enteógenos em toda a história e cultura humanas arriscaria a afirmação de que enteógenos não pode ser espiritual, a menos que se esteja sendo intencionalmente enganoso. Se você conhece os fatos, então você sabe que enteógenos tem sido parte da experiência espiritual humana desde o alvorecer da cultura humana e continua sendo até hoje. Esta não é uma opinião ou uma crença. É simplesmente o modo como as coisas são e defender o contrário é incorreto e desinformado.

Mas para ver como a Suprema Corte trata com as questões Constitucionais que cercam o uso enteógeno, considere o caso de "Smith" que foi decidido em 1990. Neste caso, um funcionário do estado de Oregon perdeu o emprego e os seus benefícios quando admitiu ter usado o peyote em uma cerimônia da Igreja Nativa Americana. Smith fez sua defesa alegando que ele estava apenas exercendo seu direito constitucionalmente protegido ao livre exercício da religião, garantido pela Primeira Emenda. Enquanto o peyote pode ser enquadrado ma lista I de drogas ilegais aos olhos da lei dos EUA, como membro de uma igreja reconhecida legalmente que faz uso do cacto peyote como sacramento, ele sentiu que foi injustamente punido pelo estado de Oregon. O estado de Oregon, por outro lado, argumentou que o peyote é ilegal no Oregon nos termos da legislação federal e o estado estava apenas cumprindo seu dever de aplicar a lei igualmente para todos os cidadãos. Smith argumentou pela liberdade religiosa e foi atropelado por interesses do Estado na defesa de leis federais e locais contra as drogas.

Smith perdeu em Oregon, e em seguida, a Suprema Corte assumiu o caso. O resultado foi que Smith perdeu e o Tribunal ficou com o interesse do Estado do Oregon. Justice Antoine Scalia escreveu a opinião majoritária do tribunal, declarando o seguinte:

“O livre exercício da religião significa, em primeiro lugar, o direito de crer e de professar qualquer doutrina religiosa que se deseja”...

“[Os réus] afirmam que proibir o livre exercício [da religião] inclui a necessidade de qualquer indivíduo observar uma lei geral aplicável que exige (ou proíbe) a realização de um ato que a sua crença religiosa proiba (ou exija)”.

"É uma leitura admissível do texto... dizer que proibir o exercício da religião... não é o objeto da [lei], mas apenas o efeito casual de uma disposição da aplicação geral que de outras formas seria válida, a Primeira Emenda não foi ofendida.

"Para tornar uma obrigação do indivíduo obedecer a essa lei contingente da coincidência da lei com suas convicções religiosas, salvo quando o interesse do Estado é "imperioso" - permitindo-lhe, em virtude de suas crenças, convir uma lei para si mesmo, contradiz tanto a tradição Constitucional quanto o bom senso.

"Se o teste do 'imperioso interesse' deve ser aplicado a todos, então, deve ser aplicado de forma generalizada, para todas as ações pensadas de maneira religiosa. Além disso, se o "imperioso interesse" realmente significa o que diz (e diminuí-lo aqui seria subverter seu rigor nos outros campos onde é aplicado), então muitas leis não satisfazem o teste. Qualquer sociedade que adotasse tal sistema estaria cortejando a anarquia. . . A proteção da Primeira Emenda sobre a liberdade religiosa não requer isso. (Divisão de Empregos do Oregon vs Smith) É bastante claro que, em sua argumentação, Scalia destacou os dois pilares da prática e da crença, como definições de liberdade religiosa. Ele não aborda o porquê de Smith estar usando peyote. Ele não o usa porque "acredita" no peyote: ele acredita no peyote porque este produz experiência espiritual direta. Pelo contrário, Scalia está abordando como a imposição de leis sobre as drogas afetam a capacidade de Smith para praticar o que ele acredita. E na prestação de sua decisão, Scalia declara que esperar que o governo conceda exceções à lei de acordo com a crença religiosa de um indivíduo seria "cortejar a anarquia”. Embora Scalia não diga muito, o que ele parece estar indicando é que a verdadeira liberdade tornaria as pessoas ingovernáveis. Se todos nós pudéssemos decidir por nós mesmos de acordo com a nossa própria compreensão da prática religiosa, seria impossível esperar que as pessoas obedecessem à lei, e a anarquia reinaria. Scalia parece ser da opinião de que esta seria uma coisa ruim. Ele também é da opinião de que a Constituição claramente não protege a prática religiosa e a crença de maneira uniforme e universal, mas apenas em consideração com as outras leis existentes, se essas leis não tiverem sido escritas com a intenção discriminatória específica (tal como uma lei escrita intencionalmente para atingir uma determinada religião, grupo ou etnia). Devido a lei contra o peyote não ter sido escrita para discriminar o uso do peyote dos nativos americanos e aplicar-se igualmente a todas as raças, Smith, de acordo com Scalia, não poderia alegar que as leis sobre o peyote estavam injustamente pesando sobre sua religião de base cultural.

A decisão de Scalia deu origem a algumas questões profundas, a mais importante das quais foi a seguinte: se uma pessoa pode perder seus direitos de participação em uma religião reconhecida que usa um sacramento psicodélico legalmente, então qual é a real proteção que há para qualquer religião? Existe alguma substância na Primeira Emenda, ou o governo pode simplesmente sobrepujar a liberdade religiosa, sempre que a pratica de uma religião entrar em conflito com a atual legislação dos EUA? Aqui, a ônus foi colocado sobre Smith para mostrar que o governo deveria sustentar os seus direitos da Primeira Emenda e não o contrário. O governo não teve que mostrar porque as leis sobre drogas foram mais invioláveis do que a Constituição. Dado que este foi o caso, que força tem a Constituição, então, para limitar as ações do governo? Segundo Scalia, aparentemente nenhuma, pois levaria a "anarquia".

O resultado da decisão de Scalia no caso Divisão de Empregos versus Smith foi a criação e promulgação da Ato de Renovação da Liberdade Religiosa de 1993, criado pelo Congresso e assinado como lei pelo presidente Bill Clinton. A Restauração da Liberdade Religiosa (Lei RFRA) foi uma resposta direta a esta terrível decisão da Suprema Corte, que parecia despir a Constituição de qualquer capacidade real de proteger os direitos dos cidadãos em face da interferência do governo com as suas liberdades concedidas. O principal impulso do RFRA é que o ônus da prova e argumento deve ser colocado sobre o governo no caso da liberdade religiosa, ao invés do reverso, como Scalia argumentou, colocando o ônus sobre o indivíduo, cujos direitos foram violados. Especificamente, na RFRA se lê:

"O Congresso conclui que -

"(1) os autores da Constituição, reconhecendo o livre exercício da religião como um direito inalienável, garantiram a sua proteção na Primeira Emenda da Constituição;

"(2)leis neutras em relação à religião exercem ônus sobre exercícios religiosos, assim como as leis destinadas a interferir com o exercício religioso;

"(3) os governos não devem exercer ônus substancialmente ao exercício religioso sem justificativa imperiosa;

"(4) em Divisão do emprego versus Smith, 494 EUA 872 (1990), a Suprema Corte praticamente eliminou a exigência de que o governo justifica o ônus sobre o exercício religioso imposto por leis neutras em relação à religião, e

"(5) o teste de interesse imperioso, tal como estabelecido na decisão judicial prévia Federal é um teste funcional para assaltar o sensível equilíbrio entre a liberdade religiosa e os interesses governamentais conflitantes.

"(B) Objetivos: Os objetivos da presente lei são -

"(1) restaurar o teste de interesse imperioso, tal como estabelecido no Sherbert v. Verner, 374 E.U. 398 (1963) e Wisconsin v. Yoder, 406 EUA 205 (1972) e para garantir a sua aplicação em todos os casos em que o livre exercício da religião é substancialmente onerado; e

"(2) para fornecer uma alegação ou defesa de pessoas cujo exercício religioso é substancialmente onerado pelo governo.

"SEC. 3. LIVRE EXERCÍCIO DA RELIGIÃO PROTEGIDO.

"(A) Em Geral: o Governo não deverá onerar substancialmente o exercício religioso de uma pessoa, mesmo se o ônus resultar de uma regra de aplicação geral, ressalvado o disposto no subitem (b).

"(B) Exceção: Governo poderá exercer ônus em uma pessoa de religião só se a esta demonstrar que a aplicação do ônus para a pessoa -

"(1), está em prol de um imperioso interesse governamental ;

"(2) é o meio menos restritivo de promover este imperioso interesse governamental.

(C) Ajuda judicial: uma pessoa cujo exercício religioso tenha sido onerado em violação da presente seção pode declarar uma alegação ou defesa num processo judicial e obter reparação adequada contra um governo. Considerando que afirmar uma alegação ou defesa nesta seção deve ser governada pelas regras gerais das consideradas nos termos do artigo III da Constituição. "

Apesar do fato de que o RFRA foi inspirado em um caso judicial que tratou com o direito legal de uma pessoa consumir uma planta visionária ilegal, neste caso, peyote, o RFRA não aborda a questão dos enteógenos em qualquer forma direta. Devido a lei não abordar diretamente enteógenos, ou a finalidade para a qual eles são usados, ou seja, produzir experiências espirituais diretas, o papel geral de enteógenos como uma categoria de atividade protegida ainda não foi abordada pelo Congresso. Em vez disso, nos são dadas orientações de como o governo está considerando os casos de violação da liberdade religiosa sem qualquer procedimento claro ou considerações, especificamente para os sacramentos enteógenos. Portanto, enquanto o RFRA ajudou a definir e proteger os direitos dos Nativo Americanos de usar o peyote na Igreja Nativa Americana, a proteção para o uso dos sacramentos enteogênicos não foi estendido para além do caso especial de nativos americanos e seus direitos legais. Em outras palavras, as proteções não foram feitas universais, de fato, foram bastante específicas e limitadas no seu alcance. Como exemplo, a religião brasileira da União do Vegetal não ganhou o direito legal para consumir a Ayahuasca em seu caso no Supremo Tribunal, não obstante a existência da RFRA e a exceção feita antes para a Igreja Nativa Americana. [N. do T.: Este caso evoluiu, mas ainda está em andamento para uma definição final] Uma limitação com o RFRA é que ainda está lidando com o conceito de "religião" e não possui diretrizes legais para abordar questões da prática espiritual individual. A suposição básica feita nos termos da legislação dos EUA é que "religião" é uma categoria protegida enquanto que a prática espiritual individual, que não está diretamente ligada a uma "religião", não é sequer levada em consideração como uma possível categoria protegida. Portanto, o RFRA não parece ter aplicabilidade para aqueles interessados em argumentar que o seu uso pessoal e não religioso de enteógenos, embora espiritual, deva ser uma classe de atividade protegida.

E se Smith não tivesse sido um membro da Igreja Nativa Americana, mas simplesmente um indivíduo que escolheu consumir peyote como sacramento para o crescimento espiritual e experiências pessoais? Será que o RFRA teria ajudado-o? Muito provavelmente não, e consequentemente, Smith não teria sido capaz de afirmar que suas práticas eram parte de uma religião per se, a menos que ele quisesse usar o argumento de que o misticismo ou xamanismo, ou mesmo a experiência espiritual direta em si, eram "religiões". Nenhuma dessas alegações satisfaz os critérios gerais de religião, tal como definido na lei dos EUA, de qualquer maneira, e é pouco provável que o tribunal teria aceitado seus argumentos. Ao fazê-lo daria mais abertura ainda para a questão da "anarquia" que Scalia escreveu em seu parecer. Quando se trata de uma "religião", o tribunal pode olhar para o que é a crença professada e quais são as práticas da instituição, e julgar se a pessoa está realmente praticando a religião de acordo com suas doutrinas e tradições. Quando se trata de prática individual, o tribunal não tem nada para avaliar a afirmação de uma pessoa, e deve tomar a sua palavra como verdadeira ou rejeitá-la como uma desculpa. Por exemplo, praticamente qualquer pessoa poderia alegar que a sua utilização ilegal de enteógenos seja "espiritual", mas por quais meios o tribunal poderia acessar a validade de tal afirmação? Como eles poderiam saber se a pessoa é fidedigna? Por quais meios poderiam avaliar essa alegação de defesa jurídica? E, além disso, por que iriam se preocupar, uma vez que a prática espiritual individual não é ainda uma categoria protegida?

É claro que tudo isso seria evitado se a proibição dos enteógenos chegasse ao fim, e esta seria a solução mais fácil. Nós poderíamos simplesmente reconhecer que os adultos competentes são livres para fazer suas próprias escolhas sobre o que colocar dentro de seus corpos e têm suas próprias razões, deixando por isso mesmo. O uso de enteógenos poderia ser legalizado e regulado para impedir que menores tenham acesso a eles, e assim utilizado livremente por adultos conscientes, já que o uso não causa nenhum dano direto a terceiros.

No entanto, dado que o uso legal de enteógenos seja improvável a um nível geral nos próximos anos, parece que a tentativa de reformular o argumento sobre categorias de práticas protegidas, ou seja, a proposta que considera a prática espiritual individual e a experiência espiritual direta como categorias protegidas, pode ser um caminho mais frutífero para abordar a questão. Os enteógenos poderiam permanecer ilegais, na lei geral, mas na sua utilização para fins espirituais poderia ser feita uma categoria protegida, assim como o consumo de peyote ainda é ilegal, mas é uma atividade protegida para os membros da Igreja Nativa Americana. Com algumas alterações ao RFRA, ou a introdução de um ato similar que aborda especificamente a centralidade da experiência espiritual individual, este pode ser um objetivo realista. Minha proposta é que precisamos de uma declaração clara de direitos nos termos das linhas do que eu esquematizei abaixo (lembrando que não sou nem um estudioso constitucional e nem um advogado ou legislador).

A Declaração Universal dos Direitos Humanos para a experiência espiritual direta
Reconhecemos o seguinte:

Os seres humanos são espirituais por natureza. A busca humana por sentido e experiência espiritual é fundamental para a experiência humana. Experiência espiritual pessoal é, além disso, entendida como um dos aspectos mais íntimos da identidade de uma pessoa, sentido de si mesmo, e visão de mundo.

Enquanto a busca humana por um sentido e experiência espiritual pode ser institucionalizada através da formação e manutenção das tradições religiosas, o impulso para o significado e para a experiência espiritual não se limita a atividade religiosa ou filiação, per se.

A prática e filiação religiosa não são idênticas à experiência espiritual. A religião, como uma instituição social, oferece a oportunidade para que pessoas com ideias similares se reúnam em grupos para expressar suas crenças coletivamente em um contexto de práticas comuns. Religião fornece estruturas para rituais, cerimônias, ensinamentos religiosos, e uma comunidade de indivíduos com orientações similares. Dentro do contexto de uma religião, as pessoas podem ter a oportunidade de ter uma experiência espiritual direta, mas esse não é necessariamente o caso. Como a experiência espiritual direta é essencialmente uma questão individual, o seu lócus é necessariamente individual, e não uma tradição religiosa ou instituição.

Enquanto a filiação religiosa e sua atividade é universalmente reconhecida como um direito humano fundamental e é protegida por lei, ao exercício individual de experiências espirituais não tem sido concedida a mesma proteção legal. Este ato visa corrigir essa omissão na lista de direitos humanos universais.

Porque o lócus da experiência espiritual direta é o indivíduo, a proteção para a experiência espiritual individual deve ser oferecida diretamente às pessoas, ao invés de para as instituições em que atuam. Como resultado, a proteção para a experiência espiritual direta não se limita aos indivíduos que são membros de tradições religiosas, mas estende-se igualmente a todos os indivíduos, independentemente de sua filiação religiosa ou a falta dela.

Todas as práticas que contribuem para o cultivo da experiência espiritual direta do indivíduo, ficam pelo presente, reconhecidas de ser protegidos por leis internacionais de reconhecimento universal dos direitos humanos, com a condição de que tais práticas não violem quaisquer outros direitos humanos universalmente reconhecidos de terceiros, tais como o direito à vida, liberdade e busca da felicidade.

Em reconhecimento deste direito humano universal à experiência espiritual direta, fica decretado que nenhum governo deve perseguir ou punir qualquer pessoa que escolha o exercício do cultivo da experiência espiritual direta de maneira que respeite os direitos humanos dos outros.

Além disso, é reconhecido que o direito humano universal à experiência espiritual direta oferece uma defesa legal para quem optar por exercer a utilização de agentes enteogênicos em sua busca para alcançar a experiência espiritual direta. Embora se reconheça que os governos têm interesse em reduzir o impacto do uso recreacional e abusivo de drogas em seu território, leis sobre drogas, por si só, não são motivos suficientes para desnudar o uso legítimo dos sacramentos enteogênicos para a experiência espiritual pessoal.

O ônus da prova para a limitação de qualquer atividade que possa ser interpretada como o cultivo da experiência espiritual pessoal direta está claramente estabelecido em qualquer órgão regulador, governamental ou não. O direito universal à experiência espiritual direta será concedido a todos igualmente, sem qualquer interferência de órgãos reguladores, a menos que os órgãos reguladores possam demonstrar para além de qualquer dúvida que as atividades de uma pessoa sejam uma violação dos direitos humanos fundamentais de outra pessoa ou pessoas. Afirmar que a prática de um indivíduo, como poderia ser o caso com o uso de substâncias enteógenas, é contra qualquer lei, não é razão suficiente para desautorizar a prática. O padrão para o ônus da prova deve ser julgado apenas enquanto qualquer prática dada viole os direitos dos outros.

É minha esperança que as questões levantadas e os argumentos apresentados neste ensaio demonstrem o porquê de tal declaração dos direitos humanos não ser apenas necessário, mas também válido e razoável. Se realmente queremos ser livres, então é razoável que sejamos permitidos em nossas liberdades para prosseguir com a nossa ligação espiritual com o divino como quisermos, contanto que nossas práticas não interfiram com os direitos dos outros. Obviamente, tal afirmação poderia ser feita para o uso de enteógenos em geral, e não apenas limitar-se a um contexto espiritual, pois assim como o nosso exercício de consciência e experiência espiritual deve ser um direito humano fundamental, assim também deveria ser com a experiência de qualquer nível de consciência que não colidir com os direitos alheios. No entanto, como estou preocupado principalmente com a consciência espiritual neste ensaio, optei por concentrar-me neste caso mais específico dos direitos. Eu sou certamente da opinião de que as pessoas devem ser livres de afetar a sua consciência como quiserem, independentemente de que seja feito para fins espirituais ou não. No entanto, dado que a religião já é uma categoria protegida, estender proteções similares à experiência espiritual direta pode ser um caminho fácil de tomar, tendo em conta as leis atuais sobre drogas. Liberdade cognitiva, em geral, é uma luta que vale a pena lutar, e eu apoio totalmente. No entanto, é minha convicção que o reconhecimento do direito legal para a experiência espiritual pode ter o efeito de livrar as leis sobre drogas na sua aplicação aos indivíduos que procuram usar enteógenos para a experiência espiritual.

Publicação original: http://www.realitysandwich.com/entheogenic_spirituality_human_right

1 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom! Tem de se assegurar o direito a livre exploração da consciência!

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