quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

H.B. - CIBERNÉTICA E ENTEOGÊNICA - 2/2

 [continuação]

Subitamente você não tem mais corpo – é análogo á desincorporação que a bomba atômica traz consigo quando ela o atinge. É por isso uma coincidência que precisamente nestes mesmos dois anos, o LSD é sintetizado, a mescalina, o MDMA, mais a redescoberta do cogumelo...

Há uma ligação muito interessante entre a tecnologia e a experiência psicodélica.



Provavelmente a ocultação dos psicodélicos tem seu clímax com a industrialização e com a furtiva substituição do espaço orgânico pelo espaço maquínico como um princípio de ordenação psíquica. Mesmo a consciência agrícola ainda é consciência orgânica: ela tem a ver com a terra, com plantas e animais. É uma consciência muito gradeada (1), ordenada, mas ainda é orgânica. Mas à medida que nos encaminhamos para os “Moinhos Satânicos” (Blake) e a classe trabalhadora de Engels, o espaço maquínico se tornou o princípio ordenador. Não é mais o arado que cria espaço, é a linha de produção que cria o espaço psíquico. Então o puritanismo vitoriano e o imperialismo devem representar a repressão pública do inconsciente por uma sobriedade rígida baseada num modelo mente/máquina que é o cogito isolado e mandatório. Se você quisesse descobrir um período da história humana em que houve realmente uma completa amnésia sobre a experiência psicodélica, este poderia ser o século dezenove, por volta de 1830-1880, quando nós pessoas civilizadas não só esquecemos de que houve algo como a experiência psicodélica como a negamos.

Como uma cultura, nós gostamos de rir de tribos primitivas – por exemplo, aqueles aos quais são mostradas fotos deles mesmos e que não conseguem se reconhecer nelas. Mas em 1876 um cientista francês caiu por acidente dento de uma das cavernas paleolíticas. Mais tarde, em seu diário ele escreveu que parecia haver alguns rabiscos na parede. Ele não podia ver que aquilo era arte, ele era tão cego quanto o pigmeu que é cego para a fotografia. De repente, uns poucos anos mais tarde, as pessoas podiam ver aquilo como arte. O que permitiu que T. S. Eliot dissesse que depois de Lascaux, a arte ocidental “tombou da escadaria”. O que permitiu Picasso de repente ver máscaras africanas, os impressionistas franceses verem arte japonesa, os hippies nos sessenta escutarem música indiana? Para os britânicos colonialistas que visitassem a Índia, a música para eles era como a “choradeira de mosquitos – como eles podem suportar isso?” Os ingleses não podiam ouvir isso como música. A geração dos meus pais nunca poderia escutar música indiana como música: “O que é esse ruído de zumbido? Garotos, vocês estão chapados de novo?” Isso é o que chamo mudança de paradigma da cognição.

No exato momento em que a enteogênese – isto é, o nascimento do Divino Interior – reaparece no ocidente, com os românticos tardios como uma subcultura, como “história oculta”, estão sendo postas as condições para esta mudança de paradigma. Nós ainda estamos basicamente submetidos a ela. A única coisa que poderia mesmo fingir suprimir esta mudança de consciência seria a Lei, como na Guerra às Drogas(2). Mas nossa lei é uma lei máquina, uma lei gradeada, mecânica, e ela é obviamente incapaz de conter a fluidez do orgânico. É por isso que a Guerra às Drogas nunca vai funcionar. Você deveria igualmente declarar guerra a todas as plantas. Logo o discurso publico está próximo do esgotamento quanto à questão da consciência. A Guerra às Drogas é um combate à própria cognição, ao próprio pensamento como à condição humana. É o pensamento esta razão cartesiana dualista? Ou é a cognição esta coisa misteriosa, complexa, orgânica, mágica, com pequenos elfos do cogumelo dançando em torno? Qual há de ser?

A Guerra às Drogas é uma guerra de paradigmas. Todo refinamento na consciência maquínica vai evocar uma resposta dialética do reino orgânico. É como se os elfos do cogumelo estivessem lá; como se houvesse uma consciência da planta que responde à consciência maquínica. Isto é uma metáfora tão bela – você não tem de acreditar em elfos, tudo é consciência humana, em ultima instância. Você não tem de acreditar em algo sobrenatural para explicar isto. Então, em torno de meados do século vinte a tecnologia começa a se afastar de uma perspectiva imperial-gigantesca para uma dimensão mais “interna”, com a quebra do átomo, o espaço virtual das comunicações e o computador. E foi por volta da mesma época que os psicodélicos realmente sérios começaram a aparecer – mescalina, psilocibina, LSD, DMT, ketamina, MDMA, etc., etc.

A guerra de paradigmas que está rebentando agora é uma medida de um antagonismo entre ciberespaço e neuroespaço, mas a relação não pode ser simplesmente vulgarizada como uma dicotomia. Isto nos traz à baila a assim chamada “segunda revolução psicodélica” – só uma outra batalha no mesmo combate. Sob um ponto de vista, nós perdemos a Guerra às Drogas nos sessenta, ela foi esmagada e levada para o subterrâneo de novo. O que Leary e Huxley sonharam, uma transformação da sociedade através desta experiência, não aconteceu. Ou aconteceu? Agora nós sabemos que a CIA estava profundamente envolvida na difusão do LSD pelo mundo. Na segunda viagem de Wasson para o México, havia um agente da CIA no grupo. Todos tiveram um momento maravilhoso, exceto uma pessoa – advinhem quem... Eles estavam interessados no lado “bad-trip” – certamente também uma experiência psicodélica. A CIA tentou monopolizar o LSD, controlar sua distribuição, eles virtualmente financiaram todos os projetos de pesquisa. Eles estavam interessados em lavagem cerebral. Os sessenta devem tanto à CIA quanto aos Learies e aos hippies. Havia esta complexa rede do bem e do mal, do sabido e do estúpido, tudo numa mistura de padrões de fumaça fractal influenciando um ao outro, no qual cada jóia reflete todas as outras jóias. Essa é a história secreta dos sessenta.

Durante os setenta e oitenta as coisas se mostraram completamente sombrias. A “segunda revolução psicodélica” que temos agora envolve novas drogas como a ibogaine e uma abordagem científica mais cuidadosa. Nós todos aprendemos a ser cuidadosos quanto a de onde vem os fundos, e nos protocolos. E há uma nova geração: não se preocupe, os garotos estão certos. O LSD é uma droga perigosa, destrói algumas pessoas, mas a vida é um negócio arriscado. Se há uma coisa que odeio é a palavra “segurança”. Vivemos numa civilização de segurança, na qual estamos eventualmente encasulados de todo perigo, quero dizer, de toda experiência. O que nos é deixado é um vegetal plugado num computador, que nunca deixa o quarto, como uma hedionda visão de um romance de William Gibson. Redescobrir o risco seria um bom conselho para nós.

A nova guinada do trabalho psicodélico pode ser encontrada no trabalho da Albert Hoffmann Foundation e na difusão do ácido na Europa oriental – tudo parte desta “segunda revolução psicodélica”, a qual ligo muito à Internet, esta resposta dialética entre o mundo da planta e o mundo da máquina. O antagonismo entre ciberespaço e neuroespaço é uma coisa – mas há também uma analogia. De alguma forma, o ciberespaço é alucinógeno, ou foi pensado para ser. Ambos envolvem um espaço interno visionário. É como dizer que o LSD é como a bomba atômica, “ele explodiu sua mente”. Ele tem este lado negativo também.

Deixem-nos ser claros: o ciberspaço está acontecendo fora de seu corpo, você deve mover seu corpo, vendo estas animações ruins se movendo ao seu redor. A realidade virtual já fracassou?

Alguém disse hoje que a realidade virtual fracassou porque ela já foi virtualmente experimentada através da mídia. Poupe seu dinheiro e escute sobre isso na tevê – isso é o bastante. É muito conceitual, um desses futuros que nunca aconteceu e nunca acontecerá. E não esqueçam que ciberespaço é muito mais que só RV (Realidade Virtual). A Rede realmente importante não é a internet, mas a rede bancária internacional. Lá, um trilhão de dólares está sendo movimentado todo dia. “O dinheiro foi para o paraíso,” como meu amigo Gordon costuma dizer. Dinheiro que se refere a dinheiro que se refere a dinheiro, etc. – o conceito mais abstrato que a humanidade já desenvolveu. Comparada a isto, a internet é nada, um minúsculo recanto das telecomunicações.

Apesar disso, a internet é interessante para mim porque ela parece ter um potencial liberador – nós queremos descobrir seu aspecto psicodélico. Pessoalmente estou ficando mais e mais pessimista, as trajetórias todas parecem acabar numa redução da nossa autonomia. A internet ou vai ser um outro instrumento para resolver a crise do capitalismo global, ou vai desaparecer ou ser relegada a um meio de comunicações menor, algo bem menos importante que a agência de correios. Há pouquíssimos espaços deixados para uma bela agitação. Não podemos mais esperar vencer esta particular batalha da guerra de paradigmas. Não acredito que esta tecnologia, mais que qualquer outra tecnologia, vai ser o instrumento que nos trará liberdade e glória. Ela não é a solução; não é nem mesmo a pergunta, muito menos a resposta. Preferiria ver a questão ampliada para incluir o neuroespaço – porque o ciberespaço, conceitualmente, é uma forma de desincorporação.

Como um historiador das religiões, vejo que a tragédia da história humana é a separação da mente e do corpo. Desde os tempos da Mesopotâmia, a religião tem sido sempre uma tentativa de escapar do corpo: ela se torna mais e mais gnóstica, no sentido do aversão ao corpo. Se você quiser ouvir algum maravilhoso gnóstico, tudo que você deve fazer é escutar algum dos entusiastas defensores da internet. As pessoas que realmente acreditam que você vai transcender o corpo, fazer o download da consciência, escapar do cadáver. Isto é imortalidade através da tecnologia, transcendência através da consciência maquínica. Isto é a mesma coisa que o “vire pastel quando bater os pés" (pie in the sky when you die) que antigos anarquistas usavam para criticar a religião. A internet, neste aspecto, é simplesmente a versão moderna da religião. O ciberespaço é a nossa versão do paraíso.

Estes mitos não vão embora. Tal racionalismo acaba se revelando um outro culto irracional, apenas uma outra ideologia, uma outra forma para a consciência de classe. O problema da reincorporação, portanto, é a única pergunta religiosa, intelectual e técnica que precisamos nos fazer. O corpo é ao mesmo tempo o mistério e a chave para o mistério. O ciberespaço não acontece no corpo. O “Corpo Sem Órgãos” é uma expressão de Deleuze e Guattari - e eles são estranhamente ambivalentes sobre o aspecto moral deste corpo. Entendo que a sua “consciência maquínica” não seja necessariamente maligna. Poderia falar sobre a experiência psicodélica como uma máquina imaginal. Minha rixa com a consciência maquínica surge quando ela postula que o corpo é maligno e a mente é boa. E não esqueçam que a igreja católica amava Descartes. Esta consciência cartesiana, que agora pensamos como maquínica, moderna e científica, foi uma vez aclamada pela igreja católica como uma verdadeira filosofia religiosa.

O neuroespaço também envolve alucinações. Você pensa que está no Palácio da Memória, mas não está. Você está apenas sentado em seu quarto, viajando em ácido: está num espaço imaginal, da mesma forma que no ciberespaço. E ainda, onde mais este evento está ocorrendo, senão no corpo? O neuroespaço é um espaço de incorporação. O ciberespaço é um espaço de desincorporação. Não quero soar como um moralista...Podemos acrescentar termos como “complexidade”, “caos”, ou “a cármica teia de gemas” (3).

Os últimos desenvolvimentos na consciência maquínica têm um aspecto “Deleuzo-Guattariniano” de subversão, tal como no ativismo via internet - com um certo sabor psicodélico. Enquanto “drogas” são criadas de uma “segunda natureza” que não é nada senão maquínica, toda a “crise das drogas” é, em boa parte, uma crise da consciência maquínica – e a heroína e a cocaína são, em boa parte, produtos- máquina, assim como o LSD. No entanto, um aspecto opositor também aparece, uma “segunda revolução psicodélica”, uma dialética de re-incorporação (“neuroespaço”) como oposto à tendência na direção da falsa transcendência e desincorporação no “ciberespaço”.

Uma das grandes “redescobertas” desta nova enteogênese é a natureza dialética do ayahuasca ou iagé (Santo Daime) – isto é, que DMT orgânico pode ser “mirado” com um inibidor MAO como a armina, e que plantas es destas duas substâncias estão globalmente difundidas, totalmente espalhadas ao ponto da ubiquidade, impossíveis de controlar, e acessíveis. Preparados só requerem baixa tecnologia de cozinha. O neo-ayahuasca, ao contrário da tecnologia de computador, não é parte do capitalismo nem de qualquer outro sistema de controle ideológico.

É justo fazer esta comparação? Sim, na medida em que a enteogênese e a cibertecnologia estão ambas interessadas em informação e, consequentemente, em epistemologia. De fato, nós poderíamos chamar ambos de “sistemas gnósticos” – ambos estão implicados no objetivo do conhecimento que emerge do abismo que parece separar a mente/alma/espírito do corpo. Assim, a versão enteogênica deste conhecimento, no entanto, implica em alargar a definição do corpo para incluir o neuroespaço, enquanto a versão cibernética implica no desaparecimento do corpo em informação, o “download da consciência”. Estes talvez sejam ambos absurdos extremos, antes imagens que situações políticas; elas também são potentes mitos, poderosas imagens.

Nós precisamos aqui de uma política – não uma ideologia mas uma ativa cognização (cognizance) das situações verdadeiramente persistentes, tão claramente quanto podemos captar em nossa condição modelada, chapada. Precisamos de um sentido estratégico de onde aplicar as cotoveladas de nossa arte material, os pequenos gestos marciais, Zen, onde mesmo uma pessoa fraca pode vencer uma batalha. Onde mesmo nós, desprezados marginais, poderíamos realmente possuir força própria e assim influenciar a história. Tudo isso leva a uma visão de auto-importância divertidamente apocalíptica e non-sense, como “Neuro-hackers vs. Nova Ordem Mundial”. Bem, é ao menos uma boa idéia para um romance de ficção científica.

(Transcrito e editado por Geert lovink e Ted Byfield)

Notas

1. A noção do “gradeado”, o “gridwork”, representa, segundo o próprio Wilson/Bey, em A Arquitetonalidade do Psicogeograficismo, o desenho da cidade primordial de Catalk Hüyük, essa mesma “grade” cruel e estruturante que governa a memória e a História, daí Hakim Bey propor a “arquitetonalidade” da deriva, espaço anti-grade e festivo, a cidade da resistência psicogeográfica. (N. do Trad.)

2. Wilson usa a expressão War on Drugs, lema da campanha anti-drogas promovida pelo governo norte-americano.

3. “Para Gary Snyder, a imagem do universo como uma vasta
teia de gemas (pedras preciosas) de muitos lados, cada uma constituída das reflexões de todas as outras pedras na teia e cada gema sendo a imagem de todo o universo, simboliza o mundo como um universo de comunidades ecológicas tradicionais.” Donald K. Swearer em Budhism and Ecology.
(environment.harvard.edu/religion/research/budhome.html)

Tradução de Ricardo Rosas

Texto extraído do site de Hakim Bey (www.hermetic.com/bey)

1 comentários:

Fernando Beserra disse...

Mudei de idéia em relação ao "primitivismo" do texto...

De qualquer modo, não é incomum um certo hermetismo na escrita do Bey.

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