terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Pinceladas Acerca da Experimentação

"Em vez de os buracos no mundo permitirem que as próprias linhas do mundo fujam, as linhas de fuga enrolam-se e põem-se a rodopiar em buracos negros, cada drogado em seu buraco, grupo ou individuo, como um caramujo. Caindo mais no buraco do que no barato." (Deleuze & Guattari)

Pinceladas Acerca da Experimentação.


A experimentação como método ou como prática não deixa de apresentar muitos mistos e lacunas com as quais nos deparamos e muitas vezes deixamos escapar. Deixando de relevar questões que não param de saltar dessas experimentações nos tornamos cegos ao que pode, na mesma medida, nos destruir. A questão do uso de substancias alteradoras da consciência e da percepção parece pertinente nesse sentido, pois o que a principio é portador de potência pode se converter em buraco-negro, princípio de decadência.

Percebe-se que não generalizo o uso de substancias ao que seria a experimentação, mas o contrário. Drogar-se é uma das varias e singulares experimentações. A potência no uso de substancias está na mudança qualitativa tanto da percepção quanto do entendimento, que ela desencadeia. Ha uma transformação da percepção cotidiana para uma percepção mais refinada, diretamente investida na duração do efeito da droga. Entretanto, tais efeitos não são propriamente intrínsecos a substância, e está tanto mais conectada a interação com o usuário. De modo que não só as substancias que usamos que nos levariam a tais percepções, assim como não necessariamente a droga leva a uma alteração positiva, havendo, como se sabe, muitos casos de "bad trip" e "surtos psicóticos", que levam muitos psiquiatras e psicanalistas a demonizarem o uso. Assim como muitos usuários que fazem do uso compensações a um cotidiano massacrante etc.



As variações as mais diversas aparecem no agenciamento-droga. E, como já se viu em alguns livros de ficção e na vida mesmo, o próprio capitalismo é capaz de se apropriar de um determinado uso, e isso não só em relação à indústria por trás da comercialização da droga. Acontece que primordialmente nunca se trata de uma relação ativo ou passivo; não se controla o uso ou o efeito, nem o uso e efeito controlam inteiramente. Existe sim uma alter-ação. (Eduardo Viana)

Esse seria um primeiro termo a ser incorporado pelos experimentadores, a alter-ação (ação de um sobre o outro, que se alteram). Implicada com seus perigos, sua prudência necessária, os movimentos e rodopios; e a conseqüente construção de um plano de consistência ou de imanência, que garante a produção de si enquanto prática afirmativa na relação com o mundo.

Outro problema é a generalização das substancias no universal 'Drogas'. Obviamente, estaríamos desconsiderando diversas nuances de cada substancia, alem de toda a problemática do joguinho político legal-ilegal. Cada substancia, com o respectivo efeito físico-psicológico, implica agenciamentos concretos específicos. Como por exemplo, pessoas que só bebem encaram a maconha de um modo diverso daqueles que apenas fumam, assim como quem fuma e bebe vê a cocaína de um modo diverso deste primeiro; assim como o efeito de uma determinada substancia não é exatamente o mesmo em cada pessoa. Isso implicaria um desdobramento intrínseco de cada substancia. Mas aqui não há porque entrar nesses detalhes, de modo que podemos pensar o uso a partir da alter-ação enquanto construção de um modus de usar.

Outros dados aparecem. Como por exemplo, a facilidade com que as pessoas que fazem uso de substancias acabam por se tornarem 'dependentes', não no sentido ambíguo do vício, mas no sentido de que a droga se torna imanente, despótica e necessária, diz respeito a uma desatenção em relação a alter-ação. E também, o que não esta distante da dependência, o ab-uso desenfreado, recomeçado sempre do zero. É quando a droga acaba por afirmar sua própria potencia no individuo ou no grupo e passa a tomar uma posição central nos agenciamentos de enunciação. Quando ela determina uma série de lugares, postos, papéis e encerra os acontecimentos na periodicidade de um só. Quando ali se desenvolve nada mais que um novo regime moral despótico, com seus lideres, suas cabeças. Todo um status daqueles que 'agüentam mais' que outros. Seus centros. Paranóias, mal-entendidos, blocagens. As desterritorializações permanecem relativas e vemos todo um jogo compensatório de reterritorializações. Chegando, obviamente, ao famigerado enquadre de "viciado", "drogado" etc. Aí se está perdido. Segue-se somente o caminho de uma pequena morte e de um longo cansaço. Corpo vazio ou corpo canceroso, no lugar de um corpo pleno. Linha de morte e não de fuga. Buraco negro da droga. Percepções Errôneas, dizia Artaud. São a contra-ação e domínio por parte das substâncias no jogo da alter-ação.

A questão pode ser retomada pelo fato de que raramente se vê uso individual isolado. Tem sempre um grupo, uma galera. E aí as coisas dependem antes de
questões de grupo do que meramente de personalidade, uso, efeito. Não podemos perder de vista que nunca estamos sozinhos, nem quando estamos literalmente sozinhos. E o uso então é sempre social e histórico. No limite: o morto-vivo-zumbi que se dopa e trabalha para isso, do agrupamento humano.

Há então quase sempre, Agenciamentos Coletivos de Enunciação, onde a droga e seus efeitos estabelecem verdadeiros estatutos e códigos, intrínsecos a cada grupo, mas que não deixam de conjurar todo devir, toda alternativa de uso, toda auto-regulação das práticas de experimentação. Generalizando um modus do uso e da experimentação que em muito desconsideram a singularidade e a multiplicidade em cada caso. Fazendo da alter-ação uma relação dada e regulada de fora pelo grupo.

E como isso se estabelece? Senão com a ação inquestionável da droga e de sua posição central nos agenciamentos coletivos? Da imprudência no uso? Da construção aparente de um plano de consistência que pendura nos sujeitos falsas imagens pro desejo? De que partimos geralmente de imagens e pressuposições que são como próteses que nos espelham um mundo-idealizado já formado?

"Os drogados não escolheram a boa molécula ou a boa linha. Toscos demais para captar o imperceptível, e para devir imperceptíveis, eles acreditaram que a droga lhes daria o plano, quando é o plano que deve destilar suas próprias drogas, permanecer senhor das velocidades e das vizinhanças." (D&G, p. 81).

É aí que toda prudência é necessária, para livrar-se da imanência da droga, e retificar o plano sempre abortado da droga, descobrir o meio de construir um plano de consistência para alem da droga, inter-agir com ela quando o corpo e a substancia se misturam.

"Mas, se é verdade que a droga remete a essa causalidade perceptiva molecular, imanente, resta toda a questão de saber se ela consegue efetivamente, traçar o plano que condiciona seu exercício. Ora, a linha casual da droga, sua linha de fuga, não para de ser segmentarizada na forma, a mais dura possível, da dependência, do dopar-se, da dose e do traficante. Mesmo que em sua forma flexível ela possa mobilizar gradientes e limiares de percepção de modo a determinar devires-animais, devires-moleculares, tudo se faz ainda numa relatividade de limiares que se contenta em imitar um plano de consistência em vez de traçá-lo num limiar absoluto."(D&G, p. 79)


No plano de imanência ou de consistência, é o próprio principio de composição que deve ser percebido, que não pode senão ser percebido ao mesmo tempo daquilo que ele compõe ou dá. È aí que a droga pode ajudar, a perceber a construção do plano, suas nuances, e não exatamente para compô-lo. É preciso, portanto, criar para si um corpo pleno em que, a partir de sua natureza, destile suas práticas próprias, seus ritmos e usos específicos (que condicione seu exercício). Alter-ações. Estar alem ou aquém da experiência da droga para poder, mesmo sem ela, ser o portador de transformações imperceptíveis. Embriagar-se de água, psicodelia das palavras, sedativos musicais....


Bibliografia:

Mil Platos Vol. 4 - Deleuze & Guattari
Uso de drogas: a alter-ação como evento - Eduardo Viana Vargas

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