quarta-feira, 17 de março de 2010

Contracultura Psicodélica

Na continuação do post do meu amigo Pedro, sobre a questão da contracultura psicodélica, segue o capítulo 3.3.1 da minha monografia já citada no post "Introdução à redução de danos".

3.3.1 – Contracultura Psicodélica

Uma forte contracultura estabeleceu-se, especialmente nos EUA, utilizando algumas SPA´s como forma de contestação de um sistema opressor, tal como de uma tentativa de evolução pessoal ou juvenilização[1]. Nesta contracultura as principais substâncias utilizadas eram as “drogas” que Antonio Escohotado chamou de “visionárias” e outros chamam de enteógenas, especialmente a cannabis e seus derivados e o LSD[2] (ácido lisérgico), este último tendo sido sintetizado pelo químico Albert Hofmann. Diversos artistas, cientistas, ativistas se engajaram para promover uma transformação social radical usando como meio uma contracultura muito particular, nunca vista antes. Nas palavras de William Burroughs (in Leary, 1999, p.9-10), um dos grandes nomes da literatura da geração beatnik, escritas em 1989 no prefácio da autobiografia de Timothy Leary:

É fascinante poder olhar para trás e perceber a cintilante rede de conexões sociais, científicas, artísticas e políticas que foram engajadas e ativadas com o início da fase de experimentos psicodélicos (e Tim Leary era a figura central dessa rede). No momento certo, Allen Ginsberg uniu-se a Timothy em 1960. Sua determinação em democratizar a experiência com drogas e compartilhá-la com todas as pessoas estava bem de acordo com o tipo de mente igualitária de Timothy, e pode ter sido decisiva para a carreira posterior como Johnny Acidseed.




É justamente por Leary ter sido um dos principais, senão o principal, influente da contracultura psicodélica que nos focaremos nele. O terreno para seu aparecimento já vinha sendo preparado desde os anos 40/50 pela geração beat do qual participou justamente o citado por Burroughs, Allen Ginsberg. Além da geração beat podemos marcar dois grandes nomes que favorecerão uma cultura muito diversa internamente, mas que teve em substâncias alteradoras da consciência um meio central ou quase central para a realização de seus projetos. Timothy cita (op.cit, p.21), entre estes “visionários”, William James que, segundo ele:

[...] foi o primeiro pesquisador renomado de drogas para o cérebro dos Estados Unidos. [...] Diferentemente das autoritárias teorias européias, a abordagem de James enfatizava o papel ativo e autodeterminante da mente na criação da realidade individual. Sua hipótese de que “esculpimos” nossas realidades a partir da “continuidade desarticulada do espaço” tornou-se o princípio básico da cultura das drogas da década de 60.

William James deu início à tradição de pesquisas sobre a alteração da mente em Harvard, chocando a comunidade acadêmica com suas experiências com peiote e óxido nitroso. Em seu livro The varieties of religious experience, William James demonstrou que importantes níveis de inteligência, escondidos por detrás de uma mente condicionada e tacanha, poderiam ser acessíveis por meio das drogas.

O outro grande nome foi o de Frank Barron, que já havia tomado os “cogumelos mágicos” antes de Leary no México e foi central no início do projeto com as drogas e a nova perspectiva em relação a algumas delas em Harvard. Frank Barron era:

Psicólogo e filosofo, recebeu o título de Ph.D em Berkley, em 1950. Muito cedo em sua carreira atraiu o interesse da Agência Central de Inteligência, a CIA, por causa de brilhantes artigos no campo de criatividade.

Foi um dos primeiros psicólogos contemporâneos a estudar os efeitos de plantas e drogas psicodélicas e um dos fundadores do setor de pesquisas de drogas psicodélicas em Harvard (1960-1961). (Leary, 1999, p.38).

Em 1960, Timothy Leary comeu pela primeira vez um “cogumelo mágico”, mais especificamente os cogumelos psilocybe que contém psilocibina e encontram-se na classificação de Escohotado (1997) como SPA “visionária” de alta potência, sendo “em doses leves e médias, a psilocibina é como um LSD mais suave, menos implacável na lucidez interna, com uma capacidade visionária não inferior a mescalina” (Escohotado, 1997, p.242). As descrições de Leary são significativas para a visão desta geração psicodélica acerca das SPA´s visionárias:

Nesses 21 anos, desde o dia que comi cogumelos em um jardim no México, venho dedicando a maior parte do meu tempo e energia à exploração e à classificação desses circuitos cerebrais e de suas implicações na evolução, no passado e no futuro. Em quatro horas, à beira da piscina em Cuernavaca, aprendi mais sobre a mente, o cérebro e suas estruturas do que nos quinze anos anteriores como psicólogo dedicado. (Leary, 1999, p.43).

Pouco tempo depois Leary começaria o seu projeto de utilização de SPA´s em Harvard, começando justamente com a psilocibina conseguida em laboratório (os alcalóides psilocina e psilocibina foram descobertos e suas sínteses químicas, assim com no caso do LSD, por Albert Hofmann [Escohotado, 1997]). O projeto começa com Timothy Leary e Frank Barron na perspectiva existencial-transacional de Leary, ou seja, estes testes não se dariam em ambientes higienicamente construídos, mas necessitariam que os pesquisadores participassem ativamente da experiência e se modificassem junto com os “objetos” da pesquisa. Nestes anos a CIA, de acordo com Leary (1999) já utilizava o LSD com finalidade interrogatória e de lavagem cerebral.

As experiências em Harvard foram inicialmente influenciadas pela visão mais “elitista de Aldous Huxley” (Leary, 1999). Leary (op.cit, p.51), que muito apreciava Huxley, estava “animadíssimo com sua compreensão e aprovação imediatas do projeto de pesquisa existencial-transacional”, que no início não focava numa atitude política de expansão da inteligência, consciência ou libertação de padrões limitadores da liberdade, mas é a partir da relação de Leary com Allen Ginsberg que a situação começa a se alterar. Allen Ginsberg foi:

Um dos poetas americanos mais influentes da metade do século XX [...] Foi o principal representante da Geração Beat, movimento que nasceu em Nova York e São Francisco na década de 50. Anárquico em essência, Ginsberg e os beats rejeitaram as formas artísticas e culturais convencionais. Eles procuram estados alterados e intensificados de consciência, novas experiência e percepções místicas por meio de drogas e técnicas iogues orientais, principalmente zen-budistas. (op.cit, p.57).

As pesquisas em Harvard tinham contato também com Humphrey Osmond, que cunhou o termo psicodélico e utilizava LSD em psicoterapia na Universidade de Saskatchewan. Leary e os pesquisadores das drogas em Harvard acabam por romper com os pesquisadores das “drogas” que as viam limitadas ao uso médico e com finalidades adaptativas ao sistema social vigente, isto é, estavam ligados ao pacto médico-estatal. De acordo com Leary (op.cit, p.58):

Os pesquisadores envolvidos em aplicações terapêuticas insistiam para que trabalhássemos dentro do sistema. A mensagem deles era a seguinte: ‘A sociedade designou aos médicos a administração de drogas para a cura de doenças. Qualquer um que não seja profissional de medicina e que forneça e tome drogas é um traficante ou viciado. Faça parte do sistema. Use a profissão médica da mesma maneira que Freud’.

Logo filósofos e médicos perceberam que a finalidade das pesquisas em Harvard extrapolavam o tratamento médico e visavam reafirmar, através da psicologia moderna, “a visão platônica-pagã-gnóstica de um mundo ‘interno’, que conteria o mapa que nos possibilitaria compreender, colaborar e nos harmonizar com as leis físicas do mundo externo” (op.cit, p.58). Com tal intenção, Frank Barron e Timothy Leary acreditavam na necessidade de um novo profissional, inexistente no mundo ocidental, um treinador para múltiplas realidades, um orientador cerebral (próximo a um xamã ou curandeiro).

Neste momento o uso das drogas psicodélicas torna-se um ativismo por parte de Leary e especialmente Allen:

Foi então que começamos a planejar a revolução neurológica, indo para além do distanciamento científico até o ativismo social. Não seriamos mais psicólogos coletando dados. Nós criaríamos os dados.

Allen, a quintessência do igualitarismo, queria que todos pudessem optar por tomar drogas de expansão da mente. Essa seria a “Quinta Liberdade”, o direito de gerenciar nosso próprio sistema nervoso. (op.cit, p.63).

Não demorou para que os projetos de Leary, Barron e Ginsberg entrassem em conflito com alguns acadêmicos de Harvard, mas também com alguns pais de alunos inscritos no projeto das substâncias psicoativas. De modo geral, de acordo com Leary, o corpo de PHDs que estudava “drogas” tinha boas relações pessoais com as outras pessoas do Departamento de Psicologia de Harvard, no entanto, estes não podiam admitir que as questões levantadas pelos estudiosos dos estados alterados da consciência existissem (op.cit). A situação piorou quando o projeto começou a atrair adeptos e professores de disciplinas mais esotéricas como Swami Vishnudananda que conduziu uma demonstração de hatha ioga na sala de seminários do Centro de Pesquisas da Personalidade. Foi assim com uma série de personalidades, e a pesquisa aos poucos atraiu também a atenção da CIA. Alunos que participaram da pesquisa foram ameaçados de perderem recomendações importantes para futuros empregos, p.ex, pelo professor Brendam Maher (op.cit, p.202). Leary e o grupo de pesquisadores mais antigos do projeto começaram a se preocupar, além do que, um corpo importante do projeto eram os estudantes de graduação que, cada vez mais, se interessavam pelo projeto, de forma que os outros projetos de Harvard foram totalmente esvaziados, gerando insatisfação de outros pesquisadores.

Os membros mais antigos do grupo – Alan Watts, Houston Smith, Walter Clark, Dick e eu – ficaram perturbados com essa ameaça aos nossos jovens amigos. Convocamos uma reunião com todos os indivíduos envolvidos na pesquisa, juntamente com as suas famílias. Mais de trinta pessoas encheram a enorme cozinha de casa. Havia gente sentada no fogão, na geladeira, nas bancadas e no chão. Todos nós concordávamos que, por mais que amássemos e respeitássemos a Universidade, essa escola preparatória para a lista dos quinhentos mais ricos da revista Fortune não era o local apropriado para ativistas filosóficos dedicados a mudar praticamente tudo o que existia.

A única solução honrosa seria o desligamento de Harvard e a formação de uma nova organização. Dick ficaria em Harvard [...]. (Leary, 1999, p.202)

O passo seguinte foi a fundação de um novo projeto para pesquisa com SPA, a Internacional Foundation for Internal Freedom (Fundação Internacional para Liberdade Interior), abreviada como IFIF (se, se). O objetivo da organização era estabelecer “centro de pesquisa por todos os Estados Unidos, para que neles fossem conduzidas sessões de treinamento com drogas psicodélicas” (op.cit, p.203). A sede nacional ainda publicou um periódico acadêmico, o Psychedelic Review[3].

Nas palavras de Albert Hofmann (s/d, p.36-37), que se encontrou algumas vezes com Leary:

Após sua expulsão da Universidade de Harvard, Leary estava completamente transformado de um conferencista de psicologia que procura pesquisas, no messias do movimento psicodélico. Ele e seus amigos do IFIF fundaram um centro de pesquisa psicodélico em ambientes adoráveis, cênicos nas cercanias de Zihuatanejo, México. Eu recebi um convite pessoal do Dr. Leary para participar do planejamento de alto nível de uma sessão de drogas psicodélicas, programada para se realizar lá em agosto de 1963. Eu teria alegremente aceitado este convite principal, no qual me foi oferecido reembolso para despesas de viagem e alojamento livre, para aprender por observação pessoal os métodos, a operação e a atmosfera inteira de tal centro de pesquisa psicodélico sobre qual estavam então, circulando relatórios contraditórios, até certo ponto muito marcantes. Infelizmente, obrigações profissionais me impediram naquele momento de voar para o México para adquirir um quadro em primeira mão do controvertido empreendimento. O Centro de Pesquisa de Zihuatanejo não existiu por muito tempo. Leary e seus partidários foram expulsos do país pelo governo mexicano. Porém Leary, que tinha se tornado agora não só o messias mas também no mártir do movimento psicodélico, logo recebeu ajuda de William Hitchcock, um jovem milionário de Nova Iorque que tornou sua mansão numa grande propriedade em Millbrook, Nova Iorque, disponível para Leary como sua nova casa e sede. Millbrook também foi a sede de uma outra fundação para o modo psicodélico e transcendental de vida, a Fundação de Castalia

Neste tempo, embora Leary tivesse pedido para sair por vontade própria de Harvard, escrevendo sobre tal no Harvard Review, um periódico editado pelos estudantes da graduação (na época o co-editor era Andrew Weil), ele foi logo após “demitido” de Harvard, quando o professor McClelland, que o contratara, estava fora do campus e em seu lugar estava o “inimigo” da pesquisa das “drogas”, Brendam Maher. De acordo com Leary (1999, p.210): “Nossa demissão atraiu uma ampla cobertura da imprensa, grande parte simpática a nós. A mídia anunciou que fora a primeira vez em trezentos anos que Harvard havia demitido membros do corpo docente”, eles não lembraram do caso de Ralph Waldo Emerson. A justificativa oficial foi do não comparecimento às aulas.

A IFIF manteve uma coordenação nos EUA e uma certa sede no México onde começou a fazer seus experimentos, tendo alguns problemas com as autoridades, especialmente por recomendações da CIA da embaixada americana, de forma que brevemente Leary teve que sair do México, ou finalizar suas atividades lá. Passou por algumas ilhas na América Central, sendo igualmente expulso por influencia de agentes do Estados Unidos (Leary, 1999). O assim chamado “papa da contracultura” conseguiu finalmente se instalar em Nova York, mais especificamente em Millbrook, até que, por motivos mais ou menos pessoais que são relatados em sua autobiografia “Flashbacks”, os pesquisadores dos “enteógenos” resolveram sair de Millbrook. Leary começou com um projeto de produzir “trips” de LSD sem o consumo de substância a partir de efeitos áudio-visuais. No entanto, ao longo de seu trabalho, cada vez mais as autoridades estadunidenses focavam em Leary como cidadão não desejado. Assim foi que, ao resolver voltar para o México, agora com sua nova companheira e filhos, Leary foi barrado na fronteira com o México. Apesar de ter descartado parte da cannabis que se encontrava em posse de sua companheira e de seus filhos, já crescidos, ainda ficou com sua filha um pote prateado contendo uma pequena quantidade da erva. Resultado, a notícia virou “manchete” e logo todos os jornais cobriram a matéria, Leary que responsabilizou-se pela cannabis foi condenado a 30 anos de cadeia e uma multa de 40 mil dólares por uma quantidade irrisória de maconha.



[1] - A idéia de juvenilização é de Arthur Koestler e foi utilizada por Timothy Leary, sendo uma teoria “que afirma que a evolução não ocorre nos adultos (forma final) de uma espécie, mas nos jovens, nas formas larvais, nos adolescentes e pré-adultos. Conclusão prática: se você quiser produzir mutações em uma espécie, trabalhe com os mais novos” (Leary, 1999, p.20).

[2] - Também as substâncias que contém LSA como as sementes de Ipomea Violácea, o Peyote, a Jurema, etc.

[3] - http://www.maps.org/psychedelicreview/


BESERRA, Fernando Rocha. Substâncias Psicoativas Ilícitas no Rio de Janeiro no século XX-XXI: criminalização, medicalização e resistências. Monografia para conclusão de especialização em saúde mental e atenção psicossocial. Escola Nacional de Saúde Pública - Fundação Oswaldo Cruz. 2010. Orientadora: Marise Ramôa. 78p

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom o texto!

Fernando Beserra disse...

Valeu Bosque.

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