quinta-feira, 13 de maio de 2010

Nicotina, Tabaco e Pituri


Nicotina, Tabaco e Pituri


Do Pharmacotheon de Jonathan Ott (pgs. 370-373)

Tradução tosquíssima por Fernando Beserra


Geralmente, não se considera a nicotina, princípio ativo e aditivo do onipresente tabaco, um embriagante capaz de produzir visões. O baixo conteúdo em nicotina dos modernos cigarros manufaturados é, de fato, insuficiente para desencadear experiências visionárias, causando unicamente a suave estimulação do fumante e um alicio dos sintomas da abstinência ocasionados pela sua adição ao tabaco (Byrne, 1988; Schelling, 1992). Com efeito, o tabaco tem sido o embriagante chamânico par excellence ao longo das Américas e Nicotiana Tabacum (fonte dos tabacos atuais para cigarrilhos, cigarros e cachimbo) e N. rústica (usada em bidis[1]) tem sido as espécies mais destacadas. De acordo com um expert em tabaco, J. Wilbert, na Amazônia “Nicotiana constitui um agente de transformação lado a lado com Anadenanthera, Banisteriopsis, Trichocereus pachanoi (o cacto São Pedro) e Virola no mundo dos homens-jaguar e na licantropia em geral”. Ademais, os preparados de tabaco são um dos mais comuns e estendidos das poções de ayahuasca (vejam capítulos 1,3 e 4) e muitos chamãs, como os da tribo dos záparo “tomam ayahuasca... para ver melhor, mas crêem que o seu autêntico poder deriva do tabaco” (Schultes e Hofmann 1979; Schultes e Raffauf 1990; Wilbert 1987). A ingestão de tabaco é uma parte integral do aprendizado chamanico em toda Amazônia (Alacrón, 1990; Schultes e Raffaut, 1992). No México, os índios tarahumara “consideram que o tabaco segue, em importância, o hikuri ou péyotl e que é mais potente que a dekuba (Datura)” (Bye, 1979a). Aparta de N. tabacum e N. rustica, os índios tarahumara fumam de forma ritual N. trigonophylla (Bye, 1979a), uma espécie de tabaco silvestre usada do mesmo modo pelos índios hopi (Whiting, 1939). No Velho Mundo os aborígines australianos utlizaram outra planta, que contêm nicotina, chamada pituri, Dubisia hopwoodii, em forma de um preparado para mascar, com fins estimulantes e como embriagante chamânico (Cawte, 1985; Watson 1983; Watson et al, 1983). Embora basicamente se trate de um gênero do Novo Mundo, existem várias espécies de tabaco naturais do Velho Mundo (do Pacifico sul, Austrália e África; veja Feinhandler et al, 1979; Goodspeed, 1954). A nicotina está presente em outras plantas diversas e se têm encontrado em traços (trazas) nas folhas da coca, embora este informe ainda não tenha sido confirmado (Novák et at., 1984). Os aborígines australianos alyamara costumavam mascar (junto com cinzas alcalinas) de folhas dessecadas de várias espécies de Nicotiana “pelo seu efeito narcótico”: N. benthaminana, N. gossei, N. ingulha, N. megalosiphon e N. velutina. Utilizavam de forma similar as folhas da espécie relacionada Goodenia lunata. As folhas de alguns destes tabacos silvestres eram maceradas e vertidas em pequenos buracos com água nas rochas, para aturdir e facilitar a captura dos pássaros que bebiam dela (O´Connel et al, 1983). Parece que Nicotiana ingulha era usada como embriagante pelo povo binbidu da Austrália (Thomson, 1961).




A etnofarmacognosia do tabaco na América do Sul tem sido resumido no recente livro de J.Wilbert “Tobacco and Shamanism in South América” (Tabaco e chamanismo na América do Sul) (Wilbert, 1987). Wilbert havia detalhado anteriormente o uso chamânico do tabaco entre os índios warao da Venezuela (Wilbert, 1972; Wilbert 1975). O uso do tabaco, observado pela primeira vez pelos europeus na primeira viagem de Colombo, era praticamente universal entre os grupos indígenas do Novo Mundo. Embora a forma mais conhecida de tomá-lo é fumado, para obter a embriaguez chamânica também se têm usado mastigado, em poções, em preparados orais “lamibles” (ambil e chimó; Kamen-Kaye, 1971; Kamen-Kaye, 1975; Schultes, 1945), em forma de rapé (Gorman, 1993) e em clisteres ou enemas. Fumado é, de fato, a forma de administração mais habitual na América do Sul sendo citada por Wilbert em 233 tribos índias, seguido em ordem de prevalência pelas poções (64 tribos), mastigação (56 tribos), rapés (53 tribos), preparados “limibles” (16 tribos) e só citou duas tribos que o utilizaram em forma de clisteres (Wilbert, 1987). O uso de enemas de tabaco aparece já mencionado no tratado clássico de N.Monardes em 1574 sobre plantas medicinais do Novo Mundo reimpresso recentemente (Monardes, 1990). Em todos os casos se utilizam grandes doses de variedades potentes de tabaco para alcançar estados visionários de transe, de forma que os conhecidos efeitos das intoxicações graves por nicotina caracterizados por alterações de visão (ambliopia do tabaco) perecem ser parte integral das visões chamânicas entre os grupos indígenas sul-americanos (Wilbert, 1987; Wilbert, 1991). O uso ritual do tabaco não têm sido exclusivo da América do Sul, mas N. rústica ou piciétl e N. tabacum ou quanhyétl têm tido uma tremenda importância no México pré-colombiano e têm sobrevivido até nossos dias (Furst, 1976; Garza, 1990; Robicsek, 1978; Schele e Freidel 1990; Schele e Miller 1986). Os índios norteamericanos das zonas temperadas como os índios costanoanos da Califórnia, os kawaiisu de Utah e os pima que utilizaram Nicotiana bigelovii (Bocek, 1984; Timbrook 1978; Timbrook, 1990). Foram encontrados N. attenuata em antigos cigarros no Arizona elaborados a base de Phragmites. Finalmente, esta planta foi usada pelos hopi, pima, yuma, zuni, washoe e os índios paiute do Sul (Adams, 1990) e de forma tradicional também ao norte como no Canadá, por exemplo pelos índios thompson (Turner et al. 1993).


Embora se tenha tentado explicar o uso do tabaco como embriagante chamânico pela presença de componentes B-carbolínicos (Janiger e Dobkin de Rios, 1976), as espécies de tabaco importantes no chamanismo contêm nicotina e as vezes quantidades menores de nornicotina, sendo estes compostos os principais responsáveis pelas propriedades farmacológicas do tabaco. Nas palavras de J.Wilbert “o interesse de nativos pelo tabaco se centra no alcalóide nicotina que ele contem. Comparando os dados etnográficos do uso do tabaco com os resultados dos estudos experimentais e clínicos se deduz que as propriedades farmacológicas da nicotina explicam certas práticas terapêuticas e crenças fundamentais do chamanismo do tabaco na América do Sul” (Wilbert, 1991). A nicotina, isolada pela primeira vez em 1807, é extremamente tóxica, bastando uma ou duas gotas de nicotina pura (60-120mg) colocada sobre a pele para matar a um ser humano adulto. Um puro habito contêm nicotina suficiente para matar a duas pessoas se se injetar nos seus corpos (larson et al. 1961). De fato, as espécies de Nicotiana tem sido utilizadas como ingredientes dos venenos de dardos na América do Sul (Bisset, 1992a) e se conhece no mínimo um falecimento devido a ingestão acidental de folhas de “tabaco do deserto” N. trigonophylla (espécie utilizada tradicionalmente pelos índios pima e yuma; Adams, 1990). Por sua vez, as folhas de N. glauca, que contêm anabasina, também tem causado mortes (Castorena et al, 1987; Turner e Szczawinski, 1991). Atualmente, os índios huicholes do México preparam uma mescla embriagante para fumar que chamam yetumutsáli, a partir de Nicotina rústica e yahutli (escrito também yyahutli ou yauhtli e chamado também pericón) ou Tagetes lucida, parente de T. erecta ou zempoalzóchitl (veja apêndice B; Siegel et al, 1977). Em Suriname e na Guiana Francesa também tem sido utilizado um rapé psicomimético a base de N. tabacum e cinzas de Sterculia (Plotkin et al, 1980). O uso do tabaco como “alucinógeno” na Mesoamérica tem sido resumido brevemente em um artigo recente (Elferink, 1983).


O uso do pituri, as folhas amadurecidas (curadas) de Duboisia hopwoodii, como estimulante e mastigatório embriagante pelo aborígines australianos foi descrito na década de 1860 por membros de um malogrado grupo de exploradores baixo o mando de W.J.Willis, onde todos, a exceção de um, morreram de fome em 1861. O chamaram bedgery, pedgery e pitchery e o qualificaram como “altamente embriagante” acrescentando que “depois de masca-lo durante alguns minutos me encontrei bastante alegre e indiferente a minha situação” (W.J.Willis e A.Morehead citados em Schleiffer, 1979). Este relato é bastante anedótico, considerando que a “situação” do autor era grave: estava morrendo de fome e contemplava seus companheiros de expedição morrendo! Em diversas mostras de pituri, assim como as folhas de D. hopwoodii, tem determinado a presença de uma elevada concentração de nicotina, ao redor de 5%, junto com nonicotina e outros alcalóides relacionados. As raízes de D. hopwoodi contêm hiosciamina e escopolamina além de nicotina, nornicotina e outros alcalóides relacionados. Em uma mostra de pituri com uma antiguidade de 80 anos se achou 0,5% de nicotina e 0,2% de metanicotina com traços de outros alcalóides (Watson et al, 1983). Uma espécie relacionada, Dubosia myoporoides, é utilizada em Nova Caledonia por nativos como antídoto contra envenenamento por peixes tóxicos chamada “intoxicação ciguatera” (Bourdy et al. 1992). As folhas desta espécie de ingerem para contrastar ao envenenamento e nelas se tem encontrado nicotina, nornicotina, atropina e escopolamina. Tem-se estimado que dois bocados de folhas podem contar ao redor de 50mg de nicotina e 20mg de escopolamina (dulva et al, 1976). Se sabe também dos aborígines australianos que mascam as folhas da espécie silvestre de Nicotiana, que provavelmente contêm nicotina, utilizando-las como estimulante (Peterson, 1979).


[1] - Nota minha: http://en.wikipedia.org/wiki/Bidis

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