domingo, 17 de abril de 2011

Tratando nossa hipocrisia: o que ensinam os usos terapêuticos da maconha

Ninguém pode dizer que o debate sobre os usos terapêuticos da planta conhecida por CANÁBIS seja recente – aliás, nada poderia ser recente, para uma planta conhecida há milênios. Mas a questão que está intrigando bilhares e bilhares de maconheiros e maconheiras pelo país afora é que a discussão sobre as propriedades terapêuticas da planta poderia ajudar, e muito, na revisão das políticas atuais.
Nos Estados Unidos, a chamada canábis medicinal representou uma onda gigante de força para a adequação de tipos diferentes de usuários(as): dentre estes, os(as) pacientes. Com esse debate melhor traduzido na realidade brasileira, a cultura canábica só teria a se beneficiar.
Visando contribuir com o debate, após algumas doses de nosso remedinho favorito para problemas de cabeça, resolvemos fazer a matéria abaixo.
PRA COMEÇAR, UM CAUSO


O caso do gaúcho Alexandre é deveras interessante: como milhares de pessoas fazem diante do diagnóstico de um tumor maligno, ele decidiu aliar a busca pelos especialistas em saúde com a busca por recursos alternativos.
Tendo ouvido falar sobre as propriedades terapêuticas da maconha no alívio a sintomas indesejáveis da quimioterapia, decidiu, em um momento de grande debilitação devido às tais sessões, juntar-se às milhares de pessoas no mundo que testam por conta própria uma alternativa famosa…
Preocupado com sua saúde, Alexandre descartou alimentar o mercado ilegal, optando por estudar e conhecer mais o plantio para uso próprio, para não entrar em contato com uma substância adulterada e tudo que a envolve.
Em seus estudos, descobriu que não só existiam cultivos voltados para o que demandava (sementes indicadas), como também modos de usar que favoreciam um cuidado com sua saúde (como os vaporizadores, que resfriam e filtram a fumaça).
E aconteceu o que ainda acontece com muitas pessoas no país e no mundo: policiais descobriram sua plantação e ele acabou preso por alguns dias, tendo defendido a todo instante que seu plantio era o que era – para uso próprio -, e não para o que as autoridades presentes no flagrante pensaram que era – para comércio. Seu plantio foi reconhecido como sendo para uso próprio.
Mas o debate segue vivo no Brasil e em outros países… Mas que questões este país poderia colocar ao mundo?
EQUIDADE E CULTURA CANÁBICA
O ato de fumar maconha pode ter vários significados diferentes, ao mesmo tempo; por isso qualquer política pública séria deve ser aberta às diferentes demandas de cada grupo populacional.
Não precisamos lutar por isso pois esta ideia inclusive já existe no Sistema Único de Saúde: é o chamado princípio de equidade, que consta na Lei 8.080/90. A definição deste princípio é que uma das tarefas das políticas públicas é a de reconhecer que todas as pessoas tem direito a acessar recursos em Saúde, sendo respeitadas as diversidades de povos, regiões e práticas culturais.
Em outras palavras, o princípio da Equidade no SUS (que se estende para todas as ações e serviços em Saúde, sejam públicas ou privadas), reconhece que, para que possamos oferecer ações em pé de igualdade para toda a população, devemos oferecer ações diferenciadas.

Em uma situação como a atual, onde a mera expressão de maconheiros(as) ainda é vista como ato de apologia, resta saber como podemos construir políticas realmente sérias sem a participação pessoas diretamente envolvidas. Nessa nuvem de ideias, algumas coisas já foram ditas, e outras nem tanto…
ALGUMAS COISAS JÁ DITAS


Acontece que a questão do acesso às propriedades medicinais da maconha não está sendo (e não será) um debate entre aprovar ou não aprovar. A questão está sendo (e será) o que aprovar, e como aprovar.
O pano de fundo de uma provável regulamentação do uso de maconha com fins terapêuticos diz respeito a um debate muito maior, que é o conceito sobre o que pode ou não ser reconhecido como terapêutico. O debate é denso, cheio de nuances. Em poucas palavras, a polêmica gira em torno da prescrição de plantas, ao invés da prescrição de fármacos.
Mesmo considerando a prescrição de fármacos, para a abertura a um processo de pesquisas e testes com seres humanos, seria necessária a criação de uma Agência específica, tema de um debate ocorrido no ano passado. O evento, que teve grande participação de pessoas de jaleco & que fumam mas não tragam, trazia como justificativa debater “o controle do uso médico” destes usos. Em outras palavras: o controle sobre a planta em si.
Ao contrário a possibilidade de cultivos (e plantios) pessoais para fins medicinais, há um grande lobby do complexo médico-industrial (i.e., laboratórios), pois estes ganham dinheiro basicamente através do registro de procedimentos ou até de patentes – e uma planta como a maconha pode ser cultivada sem grandes aparatos tecnológicos, o que é visto com maus olhos. Não por acaso, pesquisadores presentes no evento se disseram contrários ao reconhecimento dos chamados usos “recreativos” como um direito dos cidadãos com seus próprios corpos.
Mas só pra ficar nesse embate sobre prescrições de maconha, deverá haver não somente a possibilidade do plantio para uso próprio, como também a possibilidade de plantio em maiores escalas, visando a distribuição em redes locais - mesmo sabendo que esta alternativa terapêutica deverá ter uma produção regulamentada para oferecer às pessoas que não possam ou não queiram plantar.
COISAS AINDA NÃO MUITO DITAS


Para reconhecer usos terapêuticos da maconha, não precisamos necessariamente restringir o debate às prescrições médicas relacionadas. Afinal, a ideia sobre o que significa saúde há muito tempo já avançou da velha máxima que diz que ter saúde é não ter doenças. Indo direto ao assunto, podemos perguntar: e o tal uso recreativo, não-problemático, por acaso não seria também “terapêutico”?
Os pensadores e pesquisadores das drogas têm algo a dizer sobre isso, desde Paracelso (que dizia que a droga pode ser um veneno ou um remédio a depender da dose)… A “dose”, é claro, não é só uma questão de quantidade, é também do significado que as culturas e as pessoas dão aos seus próprios usos.
Todos estes pensadores e pesquisadores são unânimes em um ponto: as substâncias psicoativas não tem uma essência. Relações diversas são construídas através delas. A maconha pode ocasionar experiências boas ou ruins, e a única medida que podemos tomar em relação a isso é conhecer a cultura canábica e libertá-la da opressão que sofre. Maconheiros e maconheiras devem ensinar à sociedade quais são as estratégias para tirar melhor proveito da planta, se alguém desejar usá-la. Isto é, na verdade o que preconiza a Redução de Danos, que (pelo menos na teoria) é a estratégia oficial para o cuidado em álcool e drogas do Ministério da Saúde.


UNIÃO PARA DEFENDER A LEGALIZAÇÃO

A maconha deveria ter o seu plantio para uso próprio regulamentado não somente porque a planta possui propriedades terapêuticas pontuais sobre alguns diagnósticos em saúde. Mas também porque, como diz o historiador Henrique Carneiro, os usos de maconha podem ser vistos como buscas a um bem-estar sensorial.
Alie-se isso à informação de que a maconha é a substância ilícita mais usada no Brasil e no mundo, e que os casos de overdose são nulos, para chegar a um bom embasamento sobre a regulamentação do plantio, e sobre a mudança efetiva desta cultura de estigmatização. Não é demais lembrar que aquilo que os laboratórios mais negam (e menos entendem) é justamente as relações afetivas, pessoais, subjetivas – culturais -, que as pessoas podem ter ao ingerirem substâncias psicoativas. O que sustenta a centralidade deste poder que é dado aos laboratórios é nada mais do que esta ilusão surreal segundo a qual tudo o que acontece com cobaias de um laboratório, acontecerá com todas as outras pessoas do mundo.
Para falar destas visões fechadas, convenhamos: é muito mais fácil à lógica do mercado global de fármacos vender a ilusão de que aquele mesmo produto provocará os mesmos resultados, independente da cultura dos povos e de sua diversidade. Nós sabemos que, quando o assunto é esse, isso nunca foi verdadeiro, inclusive com relação aos fármacos.
Não à toa, a Proposição 19, que muitas pessoas defenderam como sendo única solução californiana para uma “legalização”, sofreu críticas ferrenhas por parte do movimento de maconheiros e maconheiras que perceberam, nas letras miúdas daquela proposta, uma série de dispositivos para atrelar o plantio a um complexo sistema de taxações abusivas que, no limite, era pouquíssimo amigável ao cultivo para uso próprio; quase impeditivo ao cultivo em hortas comunitárias, mas bastante aberto a investimentos de grande porte. Acontece que a maconha não é (e nunca será) somente usada para aquilo que os laboratórios dizem ou aquilo que os médicos prescrevem. A maconha também é usada porque DÁ BARATO. O que é ótimo, em todos os casos.
O fortalecimento deste setor do ativismo diz respeito à possibilidade de lucrar com a liberdade do plantio para uso próprio, e com isso o movimento se fortalece. Para defender mudanças nas leis, afinal de contas, não é preciso dividirmos o movimento entre os que veem na legalização possibilidades honestas de abrir head-shops e referências para cultivos especiais, e entre os que desejam só ter a sua hortinha particular, sem ter que por isso pagar alvarás proibitivos, nem ter negado o direito de compartilhar sua horta com amigos(as).

2 comentários:

Anarcofagico disse...

Excelente texto! Deu tempo de fazer um.

Abraço!

Fernando Beserra disse...

Não entendi o "deu tempo de fazer um"

rs

Abraço

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