quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Introdução a Redução de Danos


Eu ia fazer um pequeno post introdutório a Redução de Danos, mas resolvi aproveitar o subcapítulo 3.1 da monografia que fiz para a conclusão da especialização em saúde mental na ENSP-Fiocruz por uma mistura de preguiça e comodidade. Segue abaixo então a introdução a RD. Espero que seja proveitoso, já que é um assunto muito pertinente para quem se interessa por substâncias psicoativas, por política de "drogas" e modelos de atenção em saúde.


Em primeiro lugar, vamos tentar nos aproximar da constituição da Redução de Danos (RD). Ela aparece em meados da década de 1970 tanto na Holanda, em Amsterdã e Rotterdã, como em algumas cidades britânicas como Liverpool (Buning, 2006), tendo sido organizada e desenvolvida por: “especialistas, autoridades locais e representantes de usuários de drogas, em algumas cidades européias” (op.cit, p.345); A RD surge em cidades que enfrentavam problemas sérios com farmacodependentes, comunidades protestando, ineficiência na organização dos serviços de saúde, impotência e ineficácia da força policial. Portanto, a RD surge como alternativa a uma política de repressão e um tratamento que, visando a doença e a completa abstinência, eram claramente ineficientes, além de não respeitarem ou focaram nas pessoas como cidadãs e na experiência humana como complexa, indeterminada. É só a partir de um reducionismo, de um modelo determinista que podemos dizer que a “doença” do “ébrio”, do dependente, é algo progressivo, crônico, isto é, que já possui uma história dada como produções químicas. Nas palavras de Alan Marlatt (2000):




A redução de danos é um movimento internacional que surgiu em resposta à crescente crise da AIDS na década de 80 (ver DesJarlais & Friedman, 1993), embora as origens desta abordagem aos problemas com drogas possam ser remontadas ao século XX (Berridge, 1992). Na década passada muitos países reconheceram a necessidade de estratégias mais práticas e adaptativas para reduzir o risco de transmissão do HIV entre usuários de drogas injetáveis.


A Redução de Danos se espalha posteriormente pelo mundo, enfrentando muitas resistências a ela, já que ela desconstruía o modelo hegemônico de lidar com os usuários e dependentes de substâncias psicoativas, que rotulavam o dependente e muitas vezes os usuários como doentes, que, caso não se abstivessem do uso, progressivamente cairiam, inevitavelmente, numa dependência ou algo ainda pior. Os modelos de RD ou Redução de Riscos (RDR) começaram a ser colocados em prática, de modo oficial, em 1981 nos Países Baixos[1], seguido na Europa pelo Reino Unido em 87, Suíça e Espanha em 1990, França em 1994. Fora da Europa também vários países tiveram/têm experiências com este novo modelo, como o Brasil, Canadá, Austrália, Argentina, Estados Unidos, Chile, Uruguai, além de países do leste Europeu como Rússia, Polônia, República Tcheca e Eslováquia. Ainda, mais recentemente, desenvolveram política de RD a Índia, Tailândia, Nepal e o Vietnã (Cavacanti, 2006).


Sabemos que as resultantes do consumo de substâncias psicoativas não são algo natural ou progressivo, mas os resultados deste consumo são os mais diversos possíveis. O que o modelo doença produz é uma subjetivação de ineficácia, de impotência do sujeito diante do seu destino. Os resultados das abordagens de tratamento muitas vezes são insuficientes e, de acordo com a OMS, apresentam um índice de recaídas de 70% (OMS apud Ramôa, 2005), logo, o foco na abstinência acaba atingindo uma pequena parcela da população com dificuldades em relação ao seu consumo de SPA´s, não diminuindo tampouco os danos provenientes deste uso quando não produz a abstinência.


Lancetti (apud Beserra, 2008, p.32) em conversa com Domiciano Siqueira nos expõe acerca da RD:


A cada dia, estou convencido de que talvez fosse preciso mudar o nome, porque ela não visa reduzir nada, visa dar ênfase, porque, por exemplo, as estratégias de abstinência visam reconhecer e aprofundar a fraqueza, não é certo? Eles dizem: “você tem que reconhecer que você é fraco, e que você é dependente, e que você tem que evitar o primeiro gole, ou tem que evitar a primeira picada...”, enfim, é a mesma coisa. Então, apela-se para o reconhecimento e para o aprofundamento ou exacerbação da fraqueza, não é?

Diferentemente, vocês procuram a força do sujeito: partem da autonomia do sujeito, no sentido de buscar conhecê-lo na sua singularidade, sem catalogá-lo nem classificá-lo segundo o tipo de droga que consome, e buscam gerar um tipo de relação, de experiência, que gere também uma mudança na relação desses sujeitos com a vida e também com as drogas.


As palavras de Lancetti estão certamente entre o modelo de Redução de Danos e a Reforma Psiquiátrica brasileira, assim como as palavras de Ramôa, Serra e Vaissman (2008, p.122), quando dizem:


No campo do saber médico o dependente de outras drogas é visto como doente que requer cuidados especializados no campo jurídico como doente e criminoso. Deve-se pensar em uma assistência ao usuário de drogas que não o remeta sempre à sua impotência e sim a sua potência de vida, pois é justamente isso que o paciente busca em seu afã por um grande êxtase.


Retornando ao início da RD na Holanda, na década de 1970 a Holanda passou por uma crise econômica, acrescido ao fato a heroína ter chegado a Holanda neste período (1972), e uma leva de imigrantes do Suriname, recém independente, tentando uma vida melhor neste país. Os jovens de Suriname não foram bem recebidos e enfrentaram problemas de habitação, emprego, racismo e xenofobia. Resultados:


Alguns deles fizeram contato com membros da comunidade chinesa que, naqueles dias, eram responsáveis pelo tráfico de heroína. Um número substancial de jovens imigrantes do Suriname era recrutado para trabalhar como traficantes nas ruas e logo muitos deles ficaram dependentes de heroína. Em 1978, estimava-se haver cerca de dois mil dependentes de heroína originários do Suriname, sem qualquer contato com a rede de atendimento, envolvidos seriamente com a criminalidade, gerando grande apreensão pública na região central de Amsterdã. (Buning, 2006, p. 346).


Acrescidos aos jovens de Suriname, jovens de família operaria que em meio a crise não conseguiam encontrar trabalho, aderiram a uma visão negativista da vida e a “carreira de heroinômanos” (op.cit). Um terceiro grupo de heroinômanos foram pessoas que acreditavam ser Amsterdã a “Meca” das drogas, e procuravam asilo da perseguição que viviam em seus países. Ou seja, quando a Holanda enfrenta a situação insustentável do uso de drogas em seu país, adota uma política mais pragmática para a resolução de seus problemas, potencializados com a chegada abrupta do HIV e um grande aumento da transmissão de hepatite pelos usuários de drogas injetáveis (UDI).


A primeira conferência internacional de Redução de danos “aconteceu em Liverpool (Inglaterra), em 1990” (Ramôa, 2005, p.90), onde se desenvolveu um trabalho chamado de minimização de danos, muito similar a redução de danos e com suas especificidades enquanto política pública.


Um programa relevante para a redução de danos, influenciado pelos UDI´s já organizados enquanto movimento social foi o Programa de Troca de Seringa (PTS).


A primeira troca de seringas no mundo começou em 1984 em Amsterdã. Era uma iniciativa de um grupo de usuários de drogas. Estavam receosos de uma eclosão de hepatite B quando uma farmácia localizada no centro da cidade decidiu não vender mais nenhuma agulha ou seringa aos usuários de droga. O plano inicial era vendê-las nas dependências da União dos Usuários de Drogas de Amsterdã (MDHG). Entretanto, a Secretaria Municipal de Saúde não estava feliz com esta idéia, porque eram agulhas e seringas que terminariam espalhadas na rua ou – pior ainda – em parques infantis. Após alguma deliberação, um dos membros da União dos Usuários de Drogas trouxe a idéia dourada “vamos trocá-las, você traz sua seringa usada e ganha uma nova de graça”. Este foi o começo da troca de seringas, que é hoje uma medida de prevenção do HIV praticada em muitas partes do mundo, de Katmandu a São Paulo, de Melbourne a Dublin e de Nova Deli a Vancouver. (Buning, 2006, p.349)


Embora a redução de danos não se confunda com a questão da legalização ou liberação das SPA, na Holanda a estratégia de separar os locais de venda de drogas de menor risco (maconha, haxixe) das drogas de “risco inaceitável” (heroína, cocaína, anfetaminas, LSD) funcionou como uma formação eficiente de evitar o contato dos usuários de SPA´s leves com as consideradas pesadas. Desde 1976 a Holanda descriminalizou o uso do haxixe e da maconha a partir da revisão da Lei do Ópio. Essa mudança não parece ter levado a um aumento do uso da maconha[2] (Marlatt, 2000). Buning (2006, 347) que vivenciou os a emergência da redução de danos na Holanda nos esclarece:


Por que nós temos estes coffeeshops? É porque nós pensamos que é legal ficar “chapado”? Naturalmente não. Nós temos estes coffeeshops porque acreditamos que é apropriado separar o mercado das drogas pesadas do mercado das drogas leves. Isto significa que as pessoas que querem usar a cannabis podem fazê-lo em um ambiente relativamente seguro. Não haverá ninguém “empurrando”, querendo que o usuário de cannabis troque por drogas mais pesadas e não haverá ninguém vendendo mercadorias roubadas e nenhuma possibilidade de inaugurar uma ficha criminal se a policia chegar. O interessante é que a existência dos coffeeshops na Holanda não trouxe um consumo mais elevado de cannabis do que nos países ao redor. O consumo regular de cannabis no EUA é duas vezes mais elevado que na Holanda. Isto prova que a disponibilidade das drogas é somente um fator para que as pessoas tomem a decisão de usar drogas ou não


Um fato que contribuiu decisivamente para a implementação da política de redução de danos foi a criação e atuação da Junkiebond, que é um movimento social de usuários de droga com o intuito de zelar pelos interesses dos usuários, “melhorando suas condições de vida e moradia. Sua filosofia é a de que os próprios usuários conhecem melhor seus problemas” (Ramôa, 2005, p.92).


O ponto de partida da junkybond é zelar pelos interesses dos usuários de drogas. O mais importante é combater a deterioração do usuário ou, dito de outra maneira, melhorar as condições de vida e moradia do dependente. Sua filosofia é a de que os próprios usuários conhecem melhor seus problemas. O trabalho da “Junkybond” envolve consultas com funcionários do governo sobre questões como a distribuição de metadona, a disponibilidade de seringas esterilizadas gratuitas, a política dos legisladores e da polícia e os problemas de moradia. (van de Wijngaart apud Marlatt, 2000, p.31).


Segundo Cavalcani (2006) os resultados da RDR foram rápidos e incontestáveis, pois:

- contribuíram para uma diminuição e estabilização do uso de drogas

- permitiram substituir as drogas de rua, (ilegais e geralmente alteradas), por medicamente prescritos legalmente.

- produziram mudanças no modo de administração, fazendo diminuir o recurso a via intravenosa.

- ajudaram a contatar e a manter o contato com os UD mais marginalizados.

- facilitaram o acesso de UD aos programas de tratamento e aos diferentes serviços sociais.


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BESERRA, Fernando Rocha. Substâncias Psicoativas Ilícitas no Rio de Janeiro no século XX-XXI: criminalização, medicalização e resistências. Monografia para conclusão de especialização em saúde mental e atenção psicossocial. Escola Nacional de Saúde Pública - Fundação Oswaldo Cruz. 2010. Orientadora: Marise Ramôa. 78p.

[1] - Nas palavras de Marlatt (2000, p.31): “Embora a distinção entre tipos de drogas com base em seus efeitos prejudiciais seja consistente com a filosofia de redução de danos, o termo “redução de danos” propriamente dito só foi introduzido em 1981 em uma publicação da Secretaria de Estado para Proteção da Saúde e do Meio Ambiente”.

[2] - O mesmo aconteceu com a descriminalização portuguesa.

1 comentários:

Anônimo disse...

Parabens!

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