sexta-feira, 2 de abril de 2010

Classificação das “drogas” segundo sua Psicoatividade – Antonio Escohotado


Continuando nosso trajeto pelas classificações das substâncias psicoativas, desta vez a palavra vai para Antonio Escohotado, figurinha carimbada. O filosofo e historiador nos dá tais palavras ainda na introdução de seu livro "O livro das drogas" que, aliás, recomendo.



O que é droga?

Antes de aparecerem leis repressivas, a definição geralmente aceita era a grega. Phármakon é uma substância que é remédio e veneno ao mesmo tempo; não uma coisa ou outra, mas ambas ao mesmo tempo. Como disse Paracelso, “somente a dose faz de alguma coisa um veneno”. No primeiro tratado de botânica científica, um discípulo de Aritóteles expressou claramente isso a respeito da datura metel:

Ministra-se um dracma (3,20 gramas) se o paciente deve simplesmente se animar e pensar bem de si mesmo; o dobro dessa dose se ele deve delirar e sofrer alucinações; o triplo se deve ficar permanentemente louco; uma dose quádrupla se o homem deve morrer.

Hoje restam apenas vestígios do conceito científico. Ouvimos falar de drogas boas e más, drogas e remédios, substâncias decentes e indecentes, venenos da alma e panacéias, medicamentos delituosos e medicamente curativos. O efeito específico de cada composto é ignorado, e sobre essa ignorância recaem considerações estranhas à ação de uns e outros.

Quem procura a objetividade terá o cuidado de não misturar ética, direito e química. Mas talvez seja ainda mais decisivo lembrar que se qualquer droga se constitui em veneno potencial e um remédio potencial, o fato de ser nociva ou benéfica em um determinado caso depende exclusivamente de: a) dose; b) objetivo do uso; c) pureza; d) condições de acesso a esse produto e modelos culturais de uso. A última circunstância é extrafarmacológica, ainda que tenha atualmente um peso comparável às circunstâncias farmacológicas.


Uma classificação funcional


As drogas psicoativas podem ser classificadas segundo diferentes critérios. Em 1924 o criador da psicofarmacologia moderna, L. Lewin, falou sobre cinco tipos: euphorica (ópio e seus derivados, cocaína), phantastica (mescalina, maconha, meimendro, etc.), inebriantia (álcool, éter, clorofórmio, benzina, etc.), hypnotia (barbitúricos e outros soníferos) e excitantia (café e cafeína, tabaco, cat, coca, etc.). Depois surgiram classificações mais complexas apoiadas em tecnicismos terminológicos que, pretendendo superar as falhas da divisão proposta do Lewin – por exemplo, inclusão da cocaína junto ao ópio e não junto aos excitantes – acarretaram falhas ainda piores.




Uma segunda classificação fala de drogas “fatalmente aditivas” e drogas que “somente criam hábito”. Aqueles que defendiam esta classificação se apoiavam em um médico chamado A. Porot que, em 1953, propôs “distinguir as grandes toxicomanias (ópio, maconha, cocaína) e os pequenos hábitos familiares em relação a algumas substâncias inofensivas de uso habitual (álcool, tabaco, café, soníferos)”. Curiosamente, as substâncias chamadas “inofensivas” e “criadoras de pequenos hábitos familiares” causam milhares de vezes mais mortes, lesões e dependência do que as provocadas nas “grandes toxicomanias”.

Aprimorando os seus inconvenientes, este segundo tipo de classificação apresente o ser humano como um fantoche inerte, desprovido de vontade e discernimento próprios, atribuindo aos compostos químicos aquilo que tira do indivíduo. Assim, ignora-se a reflexão de todos os grandes médicos, desde Hipócrates até hoje: drogas e uso de drogas não são a mesma cosia. Em outras palavras, a divisão entre conveniência e inconveniência não depende de empregar este ou aquele composto, mas de empregá-lo com oportunidade e medida ou fora de hora e caoticamente.

Também inadmissível é a classificação das drogas em “psicotóxicas” e “não psicotóxicas”, que justifica com palavras de aspecto científico a diferença entre drogas proibicas e autorizadas pelo direito. Se a neurotoxicidade é uma característica verificável, medida pela destruição de determinadas células, a psicotoxicidade é uma versão moderna da heresia teológica ou da dissidência política, que carece de reflexos orgânicos. Para ser exato, entre as drogas muito usadas existe apenas uma tão neurotóxica quanto o álcool, e aparece como artigo de alimentação vendido em supermercados.

Mas se pretendemos classificar as drogas psicoativas em bases químicas estaremos fazendo algo comparável a classificar os estilos arquitetônicos pelo tipo de pedra, ou estilos pictóricos pelo tipo de corante usado pelos pintores, quando rochas e tintas são apenas elementos de obras que jamais começariam a ser feitas sem a mediação de uma aspiração preexistente, pronta a se servir de qualquer material disponível. No atual estágio de nossos conhecimentos, se é absurdo ordenar as drogas por critérios morais e jurídicos, fazê-lo em base a considerações moleculares tropeça em obstáculos não menos graves. Corpos químicos e totalmente distintos produzem efeitos muito semelhantes, e corpos com grande afinidade – os isômeros, por exemplo, que são substâncias com uma mesma estrutura molecular, porém simetricamente invertida – têm efeitos muito diferentes.


Nossos requerimentos


Enquanto não acumularmos maiores conhecimentos, podemos partir de necessidades ou funções humanas básicas, deixando para os legisladores a explicação de compostos dispares receberem tratamento igual e compostos semelhantes receberem tratamentos diferentes, e esperando que os químicos esclareçam por que substâncias gêmeas exercem efeitos tão pouco análogos sobre nosso organismo e substâncias sem parentesco exercem uma ação tão similar. Estes enigmas do direito e da química talvez sejam revelados com o tempo mas, enquanto isso não ocorre, as drogas psicoativas poderiam ser ordenadas precisamente por sua psicoatividade.

Assim, sugiro considerarmos três esferas. A primeira se relaciona ao alívio da dor, do sofrimento e do desassossego, considerando dor a resposta imediata ante uma lesão (uma martelada no dedo, por exemplo) sofrimento a resposta ante uma perda atual ou possível (uma amputação ou uma doença crônica, por exemplo) e desassossego aquilo que impede dormir, concentrar-se ou simplesmente existir sem angústia. A segunda esfera se relaciona com esse alheamento que o poeta chamava “não desejar os desejos”, entre cujas manifestações se encontram preguiça, impotência e tédio. A terceira esfera está relacionada à curiosidade intelectual e ao coração aventureiro, mal adaptados a uma vida imersa na rotina anunciada pelos outros, e cuja aspiração é abrir horizontes próprios.

As drogas do primeiro tipo proporcionam – ou prometem – um tipo de paz interior, da sutil hibernação ao plácido embrutecimento. As drogas do segundo tipo proporcionam – ou prometem – um tipo de energia abstrata, como um aumento da tensão entre circuitos elétricos. As do terceiro tipo proporcionam – ou prometem – um tipo de excursão a zonas não percorridas do ânimo e da consciência.

É interessante saber como e até que ponto as drogas conhecidas cumprem tais funções usando testemunhas de primeira mão. Assim como um jurado confia em testemunhas presenciais e não em falatórios, os venenos usados na prevenção de males e promoção de benfeitorias são julgados somente a partir de experiências vividas

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Nota minha (Fernando Beserra):


As três categorias de Escohotado seriam então:


1- Em busca da Paz (nas quais estariam incluídos)

1.a – Dentro do produzido por nosso corpo

1.1ª – Ópio

1.2ª – Morfina

1.3ª – Codeína

1.4ª – Heroína

1.b – Fora do produzido por nosso corpo

1.1b – Sucedâneos sintéticos do ópio (metadona, buprenofina, pentazocina)

1.2b – Tranqüilizantes maiores

1.3b – Tranqüilizantes menores

1.4b – Soníferos

1.5b – Os grandes narcóticos (clorofórmio, éter, gás hilariante e fentanilas)


2 – Em busca de brio puro

2.1 – Os estimulantes vegetais (café, coca)

2.2 – No plano Químico

2.2.1 – Cocaína

2.2.2 – Crack

2.2.3 – Anfetaminas

2.2.4 – Cafeína

2.2.5 – Estimulantes de ação muito lenta


3. Em busca da excursão psíquica

3.1 – Substâncias de potência leve ou média

3.1.1 – MDMA ou Ecstasy

3.1.2 – Derivados do cânhamo

3.1.3 – Maconha (maconha caseira ou skunk)

3.1.4 – Haxixe

3.2 Substâncias de Alta Potência

3.2.1 – Mescalina

3.2.2 – LSD

3.2.3 – Ergina

3.2.4 – Cogumelos psilocibina e seus alcalóides

3.2.5 – Ayahuasca, Iboga e Kawa

3.2.6 – Fármacos recentes

2 comentários:

Tiago Sioux Lakota disse...

Gostei do conceito de Droga neste artigo, muito interessante!!

entrem la no meu blog tb!!
http://caminhosdoxama.blogspot.com/

Abraçãoo!

Fernando Beserra disse...

Fala Tiago,

Tudo bom?

Vou dar uma olhada sim.

Antonio Escohotado é referência na área, especialmente pensando em pesquisadores que não apoiam a exdrúxula guerra as drogas e, portanto, podem abrir o leque de possibilidades para se pensar de forma ampla sobre seus potenciais.

Abraços!

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