sexta-feira, 7 de maio de 2010

Psiconautas e Sociedade Contemporânea


Caminhamos numa época perigosa, pelo menos desde a construção de um belicismo tão potencialmente destrutivo. As estratégias da maioria dos empresários e governantes são excessivamente pragmáticas e racionais, ligadas, quer queiramos, quer não, aos modelos de gestão capitalistas. Neste contexto obscuro o meio ambiente sofre: das pessoas, passando pelas cidades, até chegarmos a natureza, estão todos expostos a benefícios e malefícios produzidos pela civilização ocidental. A partir de especialismos científicos e metodológicos que nos fazem concentrar cada vez mais em menores áreas do conhecimento ou da produção, ficamos alheios ao “todo” e as resultantes sociais de nossos atos. Trabalhamos como máquinas e máquinas não têm sentimento, simplesmente operacionalidade. A ética, ao ser perdida a visão complexa do todo, agoniza.


Organizações revolucionárias, reformistas, alternativas, surgem e desaparecem, muitas vezes alterando significativamente o mundo, outras, sequer deixando vestígios. Neste meio encontramos um movimento psiconauta[1] que novamente emerge, pois que havia se associado, na década de 60, fortemente as influencias hippies e desde a década de 80 todo este movimento entrou num rápido declínio. Salvo uns poucos pesquisadores de um lado e hippies ou neo-hippies de outro, não havia muita coisa.


Mas, se a teoria junguiana está correta, quando uma tendência se torna unilateral existe um movimento compensatório se agitando no inconsciente, até que uma hora ele emerge. Terrence Mckenna e Jonathan Ott já observaram esta nova transmutação do movimento de usuários de enteógenos[2] ou psicodélicos.



Por vezes esta compensação da uniliateralidade vigente aparece de forma neurótica, especialmente quando esta ascensão simbólica, isto é, esta invenção misteriosa que re-une consciência e inconsciência, novidade e permanência, é negada e combatida ferozmente pelas forças dominantes (seja pelo ego, seja por um conservadorismo social dirigido pelo Estado ou por indústrias do espetáculo). Não somos nós que curamos a neurose, é ela que nos cura. É a neurose que nos obriga a sair de um centro tacanho e não nós dá outra opção senão: mudar ou ficar na merda. Portanto, o uso excessivo de substâncias psicoativas, e muitos já noticiaram tal fato, se torna excessivo em nossa época e somos arrastados neste contexto histórico que mistura miséria, violência, reificação, destruição planetária e para muitos a agonia da falta de sentido da existência. De forma inconsciente, muitos se tornam destrutivos, mas também os dependentes de substâncias psicoativas sabotam o esquema capitalista se tornando cidadãos “não aptos” a produzirem da forma apropriada como imaginam os empresários do lucro[3]. Por outro lado, e paradoxalmente, tornam-se o próprio modelo do consumismo na sua forma mais radical, um emblemático símbolo do extremo capitalismo. Felizmente se o todo não é apenas a soma das partes, como já observaram os psicólogos da Gestalt, também as partes não se limitam ao todo, como observa Edgar Morin, e nem todo usuário utiliza as substâncias psicoativas (cada uma com sua especificidade) de maneira compulsiva, pelo contrário, a dependência normalmente se refere a uma minoria.


O uso de enteógenos, nesse contexto, onde as alternativas se dão entre se conformar e aceitar o dogma ou tantas vezes se rebelar de forma inconsciente (como no uso compulsivo de substâncias psicoativas), o uso de enteógenos e a entrada em contato com o inconsciente ou o imaginal faz com que o psiconauta se coloque de fronte a realidade insustentável do rumo político-religioso-ecológico da sociedade ocidental. O retorno a imaginação, tantas vezes ligadas a uma religiosidade, no sentido de religare, faz que o psiconauta se coloque diante do numinoso (termo de Rudolf Otto), do misterium tremendum, o que permite que ele re-signifique a si e ao mundo, a partir de outros estados de consciência. E, se estabelece esta nova vinculação com o inconsciente não de forma de um enfrentamento, hostil, mas de forma consciente e deliberada, de forma a integrar a irracionalidade perdida, então este movimento pode ser muito promissor. Pois que quando nossa razão se torna unilateral, ela se entorpece e justifica as maiores barbáries, a exemplo do nazismo, da eugenia ou do proibicionismo.


Se voltarmos a pensar na agonizante ética, no ethos, é justamente este um dos pontos cardeais que a experiência psiconáutica pode resgatar, isto é, uma saída dos ditames da moral sem a queda num amoralismo devastador, típico da pragmática do lucro uber alles. O que o racionalismo e o empirismo ocidentais perderam e consideraram mera “crendice” foi a experiência da chamada “Vox Dei” ou “Voz de Deus” que Jung associa com um “ato de consciência” e Terrence Mckenna com o valor evolucionário das alucinações auditivas. Fato é que ambas as visões contemplam uma espécie de intuição ou da voz de uma alteridade que permite a superação de caminhos já dados, o que acontece especialmente em momentos de conflito moral ou culminantes.


Mas, para que se produza uma transformação pessoal e coletiva não basta o uso de substâncias psicoativas chamadas de enteógenos, pois que estas contêm apenas um potencial enteogênico, como nos atesta, por exemplo, o uso simplesmente recreativo de LSD em raves. O determinante na experiência, além do ambiente (setting) e do estado subjetivo do usuário (set), é sem dúvida sua relação com o simbólico. Nas palavras do sábio suíço, Carl Gustav Jung, em Civilização em Transição:


[...] o inconsciente só terá para nós uma função criadora de símbolos se estivermos dispostos a reconhecer nele um elemento simbólico. Os produtos do inconsciente são pura natureza. A natureza não é por si só um guia, pois não existe em função do homem. Mas se quisermos valer-nos dela como tal, poderemos dizer como os antigos: naturam si sequemur ducem, nunquam aberrabimus (se tivermos a natureza por guia, nunca trilharemos caminhos errados). (...) O mesmo acontece com a função orientadora do inconsciente. Pode-se usar o inconsciente como fonte de símbolos, mas com a necessária correção consciente que, aliás, temos que aplicar a todo fenômeno natural, para que possa servir aos nossos objetivos.


Desta forma tencionamos uma re-união consciente e inconsciente e os enteógenos tem função fundamental ai, especialmente para nós ocidentais, tão apaixonados pelo pater ratio (pai razão). Os que fogem desta razão, por outro lado, comumente acabam caindo em novas unilateralidades que, para muitos, também precisam ser vividas (e daí, p.ex, o sonho dos primitivistas) - e depassadas. É claro que, tanto para cá quanto para lá, existem componentes psico-sociológicos fundamentais. A entrada em tribos que louvam a razão ou a intuição é muito cara a seus adeptos e se levarmos em conta a “vontade de poder” que Alfred Adler já observara tão bem nos sujeitos ocidentais, teremos alguma visão ampla do assunto, abarcando as nossas sombrias faces, nosso gozo com status e com nossas personas: o xamã, o cientista, o magista, o revolucionário. Friederich Nietzsche, o tão famoso bigodudo filosofo alemão, já muito antes de Adler observara esta direção humana. Entretanto, Nietzsche, mais perspicaz, lembrou-nos da “vontade de potência”, pois que àqueles que desejem superar o presente homem, possuem ou precisam desta vontade de potência que, mais do que vontade de poder-sobre, é vontade de possibilidade, isto é, abertura para a invenção. Por isso a criança sempre supera o leão (cf. em Assim falou Zaratrustra), mas nunca o superaria se antes não pudesse ter olhado de frente seu lado obscuro.


O movimento psiconauta, portanto, que volta a ter força, parece precisar oscilar entre ciência e movimento social vivo para que não tenha uma atitude resignatória diante dos problemas sociais amplos. Uma consciência ampliada, se é isto que almejam os psiconautas contemporâneos, exige um comprometimento e também uma ética mais apurada. Se não for assim a psilocibina em cápsulas e o LSD em blotters, logo se tornarão meros remédios vendidos nas drogarias da esquina, aliados aos padrões de destruição do mundo e de nós humanos, mas, não em direção a um além-homem, de uma humanidade em devir, mas de um sub-homem, preso e impossibilitado de re-afirmar sua ligação com o cosmos, com a vida, com a transformação.



[1] - O termo é de Ernst Junger e se refere aos exploradores ou viajantes da psique que utilizam substâncias emteogênicas para tal finalidade.

[2] - Etimologicamente: Volver-se divino interiormente. (Leia mais aqui no Blog)

[3] - Sobre a sabotagem da produção por meio do uso da cachaça por escravos ver Álcool e Drogas na História do Brasil (org. Henrique Carneiro e XXX)

2 comentários:

Luis Paulo Lopes disse...

Muito bom o texto Fernando!

Anônimo disse...

Parabens!

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