quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Cannabis Medicinal: Não lemos e não-gostamos?

Por Elisaldo Carlini


Em Maio deste ano foi realizado o Simpósio Internacional: “Por uma Agência Brasileira da Cannabis Medicinal?” sob minha presidência, contando com a participação de cientistas do Brasil, Canadá, Estados Unidos, Inglaterra e Holanda, representantes brasileiros de vários órgãos públicos, sociedades científicas e numerosa audiência. Após dois dias de intensas discussões foi aprovado por unanimidade um documento recomendando ao Governo Federal a oficialização da criação da Agência Brasileira da Cannabis Medicinal.
Esperava uma discussão posterior, científica e acalorada, pois sabia de algumas opiniões contrárias à proposta. Entre estas o parecer do Departamento de Dependência Química da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) cujos representantes compareceram apenas para apresentar seu parecer, ausentando-se totalmente, antes e depois, de todo o restante do simpósio.

Esta havendo sim a esperada discussão, veiculada principalmente através da Folha de São Paulo, mas num nível de entristecer. De fato, expressões como – “o dom de iludir”; “Lobby da maconha”; “Maconhabras”; “uma idéia fixa: a legalização das drogas”; “elementos com pretensa respeitabilidade”; “paixão dos lobistas”; “exemplo de indigência intelectual”; “querem maiores facilitações para o consumo”; “travestidos de neurocientistas”; – não se coadunam com a seriedade que deve prevalecer em qualquer discussão científica. Os autores de tais infelizes afirmações certamente não leram a celebre frase de Claude Bernard, o pai da medicina experimental: “em ciência criticar não é sinônimo de denegrir”.



Por outro lado, os contrários ao uso medicinal da maconha utilizaram de argumentos inverídicos (para dizer o mínimo) quando tentam criar uma atmosfera de pânico, desviando o foco da atenção (maconha como medicamento). Assim:

• Legalização da Maconha – O item 6 da carta do Simpósio diz cristalinamente: “o uso clínico dos derivados da Cannabis sativa L ou de seus derivados naturais ou sintéticos não pode ser confundido com o uso recreativo (não-médico) da planta”. Os autores das infelizes frases não leram, portanto, esta resolução.

• “O uso médico esta longe de receber aprovações de órgãos como a Agência FDA dos EUA”, dizem os autores das afirmativas. Ora, um princípio ativo da maconha, o ∆9-THC, esta aprovado como medicamento por esta Agência desde a década de 1990, sendo o produto Marinol® produzido e utilizado nos Estados Unidos, e exportado para vários países há quase 20 anos.

Portanto, os autores de tal afirmativa também não leram nada a respeito. Mas não é só isso, pois a maconha e seus derivados também já têm aprovação para uso médico em países como Canadá, Reino Unido, Holanda e Espanha. A Ministra da Saúde da Espanha chegou a declarar: ao aprovar o seu uso para a Esclerose Múltipla: “O uso terapêutico da cannabis é estudado há anos, por isso existem testes clínicos e evidências científicas de sua utilidade em determinadas doenças”

• Dizem ainda os autores das frases: “O uso terapêutico da maconha não tem comprovação científica. Se recomendado negaria a busca da ciência… por produtos cada vez mais seguros”.

A Dra. Nora Volkow diretora do Instituto Nacional do Abuso de Drogas (NIDA) dos Estados Unidos declarou em Março deste ano a uma revista brasileira “Não existe droga segura”, o que é uma verdade, também para a maconha. Vem daí a necessidade de um médico estudar a relação risco/benefício de qualquer droga que prescreve. Por exemplo, segundo dados do FDA de 1997 a 2005 houve 196 relatos de suspeita de morte coincidente com o uso de antieméticos (uma indicação também aprovada para a maconha). Não houve nenhuma suspeita de morte pelo uso da maconha. Por outro lado a Dra. Valéria declarou também que os canabinóides têm algumas ações terapêuticas úteis como efeito antiemético, aumento do apetite em casos de câncer e AIDS, benefícios analgésicos e em glaucoma.

• A alegação de que “não precisamos que o Governo Federal crie, por meio de Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD), uma agência para …..a maconhabras” Primeiramente é preciso esclarecer que a SENAD é uma sigla para Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, conforme já aprovado há mais de três anos; portanto, os autores dos artigos na Folha de São Paulo não leram a respeito. É preciso ainda esclarecer que a SENAD não patrocinou e não auxiliou com qualquer quantia a realização do Simpósio. Por outro lado, por se ausentarem de quase todo o simpósio, não sabem que o solicitado na carta foi a “oficialização” à ONU do nome de Agência Nacional da Cannabis Medicinal; conforme enfatizado pelo INCB, órgão da ONU, em 2009. De fato, as leis necessárias para esta criação já foram aprovadas pela Lei 11.343 de 23/08/2006 e seu Decreto regulamentador nº 5.912 de 27/09/2006.

• “A maconha causa dependência” segundo os autores das frases. Ninguém nega esta propriedade indesejável da maconha, como também ocorre com muitos outros medicamentos. Mais uma vez cabe a análise da relação risco/benefício ao se utilizar os derivados da maconha ou de qualquer outra droga. Teriam os autores da frase opinião semelhante a muitos outros medicamentos que são fortes indutores de dependência como morfina e vários outros opiáceos responsáveis por milhares e milhares de casos desta reação adversa? Pretenderiam eles solicitar proibição de uso clínico destas drogas?

• “Até hoje há pouco estudos controlados, com amostras pequenas” e “o uso de terapêuticos da maconha não tem comprovação científica…” Muita literatura médica precisaria ser lida para permitir afirmativa tão categórica. Existem já dezenas de livros e centenas de artigos científicos publicados sobre as propriedades medicinais da maconha. Por exemplo, em duas extensas revisões recentes (Journal of Ethnopharmacology 105, 1-25, 2006; Cannabinoids 5 (special issue), 1-21, 2010) mais de uma centena de trabalhos científicos são analisados, a maioria deles demonstrando os efeitos que são negados pelos autores das frases. Estas revisões concluem que: “cannabinóides apresentam um interessante potencial terapêutico, principalmente como analgésicos em dor neuropática, estimulante do apetite em moléstias debilitantes (câncer e AIDS) bem como no tratamento da esclerose múltipla”

. Há ainda a salientar que várias sociedades científicas americanas já se posicionaram favoravelmente ao uso médico da maconha tais como: Associação Psiquiátrica Americana, Sociedade de Leucemia e Linfoma dos EUA, American College of Physicians e Associação Médica Americana. Isto sem contar que os Ministérios da Saúde do Canadá, Estados Unidos, Espanha, Dinamarca e Reino Unido já aprovaram o uso medicinal.

• Segundo os autores das frases os proponentes da Cannabis Medicinal usam a “estratégia de confundir o debate” e “…a confusão fica por conta de a ativistas comprometidos com a causa da legalização”

Ora, esta argumentação poderia bem ser utilizada no sentido oposto, como pareceria ser o caso. Sendo totalmente contrário a qualquer uso da maconha investem contra o seu uso medicinal, parecendo tentar convencer o público de que aprovação do uso médico e legalização seriam a mesma coisa, o que esta longe de ser verdadeiro. É bem possível que um forte sentimento ideológico possa estar por trás da confusão armada, o que seria lamentável. Para continuar uma discussão científica minimamente aceitável dever-se-ia por iniciar a leitura de dois artigos publicados neste ano de 2010, em duas das mais serias e respeitáveis revistas científicas do mundo: “Maconha médica e a Lei” (New England Journal of Medicine 362, 1453-1457, 2010) e “Como a Ideologia modela a evidencia e a política: o que conhecemos sobre o uso da maconha e o que deveríamos fazer?” (Addiction 105, 1326-1330, 2010).

Realmente, sem ler não é possível continuar este debate! Sugiro que todos façam “o dever de casa”, atualizando o seu conhecimento com as leituras de mais artigos científicos recentes.

(*)
E. A. Carlini

• Professor-Titular de Psicofarmacologia – UNIFESP
• Diretor do CEBRID – Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas
• Membro Titular do CONED (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas)
• Membro do Comitê de Peritos sobre Álcool e Drogas OMS (7º mandato)
• Ex-membro do Conselho Internacional de Controle de Narcóticos (INCB – ONU) (2002-2007)

2 comentários:

Rodrigo disse...

A argumentação de Carlini é boa. Mas não vejo avanços políticos significativos para mais um remédio encapsulado, mesmo q a base de cannabis.

Acho que essas personalidades tem que sair do armário quando o assunto é acabar com a proibição. Fehar os olhos para o sofrimento e a violência vividos para os que fazem outros usos q não o medicinal, pode acabar parecendo lobby mesmo. Só que não da maconha, do remédio.

Fernando Beserra disse...

Olá Rodrigo,

A argumentação de Carlini de fato é muito boa, bastante diferente da do Laranjeiras, bastante tendenciosa. Ele e Dartiu na minha opinião são dois grandes nomes atuais do estudo de substâncias psicoativas que merecem nossa consideração.

A distinção do uso recreacional x uso medicional que tanto Carlini coloca, pode ser também um argumento estratégico, facilitando a implementação do uso medicinal.

O uso medicinal da cannabis é importante, especialmente para as pessoas que a utilizam com este fim (conseguindo condições de vida muito melhores). Ele facilita a legalização para o uso extra-medicinal? (religioso, lúdico, etc..). Acredito que sim, na medida em que desmistifica a cannabis.

Por outro lado, estou de acordo com você que não é um ganho tão grande, já que mantêm a Guerra as Drogas em voga, isto é, a necessidade do usuário recreacional, a grande maioria, comprar a erva no mercado ilegal, portanto, com perigo de repressão, com produtos de qualidade dúvidosa, etc. Além da violência gerada pela Guerra as Drogas. Enfim, são muitos motivos que temos para legalizar.

Sobre o lobby, acredito que em qualquer lugar que nos coloquemos, vivendo numa sociedade capitalista, existe este risco. Pode ser lobby do remédio, da proibição ou mesmo do comércio regularizado. Todos tem seus meios de negociação. Porém, o comércio lícito evita centenas de milhares de mortes, melhora a qualidade do produtos, etc. etc.

Um abraço.

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