quinta-feira, 23 de junho de 2011

Re-imaginando a Psiconautica

por Fernando Beserra

 
Caminhamos numa época perigosa, pelo menos desde a construção de um belicismo tão potencialmente destrutivo. As estratégias da maioria dos empresários e, algumas vezes, dos governantes são fantasiosamente pragmáticas e racionais, ligadas aos modelos de gestão capitalistas. Neste contexto obscuro o meio ambiente sofre: das pessoas, passando pelas cidades, até chegarmos à natureza, estão todos expostos a benefícios e malefícios produzidos pela civilização ocidental. Lembrando a música da banda de hardcore dos anos 80, Dead Kennedys, podemos brincar resumindo este espírito: Lucro ubber alles – lucro acima de tudo!

 
Organizações revolucionárias, reformistas, alternativas, surgem e desaparecem, muitas vezes alterando significativamente o mundo, outras, sequer deixando vestígios. Neste meio encontramos um movimento psiconauta[1] que novamente emerge, pois que havia se associado, na década de 60, fortemente às influências hippies e desde a década de 80 todo este movimento entrou numa rápida descendência. Salvo uns poucos pesquisadores de um lado e hippies ou neo-hippies de outro, não havia muita coisa.

 


Mas, se a teoria junguiana está correta, quando uma tendência se torna unilateral existe um movimento compensatório se agitando no inconsciente, até que uma hora ele emerge. Terrence Mckenna e Jonathan Ott já observaram nova transmutação do movimento de usuários de enteógenos[2] ou psicodélicos. Por vezes esta compensação da unilateralidade vigente aparece de forma neurótica, especialmente quando esta ascensão simbólica, isto é, esta invenção misteriosa que re-une consciência e inconsciência, novidade e permanência, é negada e combatida ferozmente pelas forças dominantes (seja pelo Ego, seja por um conservadorismo social dirigido pelo Estado ou por indústrias do espetáculo). Não somos nós que curamos a neurose, é ela que nos cura. É a neurose que nos obriga a sair de um centro tacanho e não nós dá outra opção senão: mudar ou ficar na merda. Portanto, o uso excessivo de substâncias psicoativas, e muitos já noticiaram tal fato, se torna excessivo em nossa época e somos arrastados neste contexto histórico que mistura miséria, violência, reificação, destruição planetária e para muitos a agonia da falta de sentido da existência. De forma inconsciente, muitos se tornam destrutivos, mas também os dependentes de substâncias psicoativas sabotam o esquema capitalista se tornando cidadãos “não aptos” a produzirem da forma apropriada como imaginam os empresários do lucro[3]. Por outro lado, e paradoxalmente, tornam-se o próprio modelo do consumismo na sua forma mais radical, um emblemático símbolo do extremo capitalismo. Este contexto de miséria e violência amplia nossa margem de transformação e quase nos arranca de nossa monotonia, exigindo ação e mudanças.
Nesse cenário onde as alternativas se dão entre se conformar e aceitar o dogma ou tantas vezes se rebelar de forma inconsciente (como no uso compulsivo de substâncias psicoativas), o uso de enteógenos e a entrada em contato com o inconsciente ou o imaginário faz com que o psiconauta se coloque de fronte a realidade insustentável do rumo político-religioso-ecológico da sociedade ocidental. O retorno à imaginação, tantas vezes ligadas a uma religiosidade, no sentido de religare, faz que o psiconauta se coloque diante do numinoso (termo de Rudolf Otto), do misterium tremendum, o que permite que ele re-signifique a si e ao mundo, a partir de outros estados de consciência. E, se estabelece esta nova vinculação com o inconsciente não na forma de um enfrentamento, hostil, mas de forma consciente e deliberada, de forma a integrar a irracionalidade perdida, então este movimento pode ser muito promissor. Pois quando nossa razão se torna unilateral, ela se entorpece e justifica as maiores barbáries, a exemplo do capitalismo selvagem, da eugenia ou do proibicionismo. Quando nos falta Eros, o amor, o afeto, o carinho, vivemos como robôs menosprezando o que temos de mais caro e, assim sendo, só podemos produzir ou reproduzir a mais completa insanidade (Eco).

 
Mas, para que se produza uma transformação pessoal e coletiva não basta o uso de substâncias psicoativas chamadas de enteógenos, pois que estas contêm apenas um potencial enteogênico, como nos atesta, por exemplo, o uso “simplesmente” recreativo de LSD em raves. O determinante na experiência, além do ambiente (setting) e do estado subjetivo do usuário, é sem dúvida sua relação com o simbólico. Nas palavras do sábio suíço, Carl Gustav Jung, em Civilização em Transição:
“[...] o inconsciente só terá para nós uma função criadora de símbolos se estivermos dispostos a reconhecer nele um elemento simbólico. Os produtos do inconsciente são pura natureza. A natureza não é por si só um guia, pois não existe em função do homem. Mas se quisermos valer-nos dela como tal, poderemos dizer como os antigos: naturam si sequemur ducem, nunquam aberrabimus (se tivermos a natureza por guia, nunca trilharemos caminhos errados). (...) O mesmo acontece com a função orientadora do inconsciente. Pode-se usar o inconsciente como fonte de símbolos, mas com a necessária correção consciente que, aliás, temos que aplicar a todo fenômeno natural, para que possa servir aos nossos objetivos.”

 
Desta forma tencionamos uma re-união consciente e inconsciente e os enteógenos têm função fundamental aí, especialmente para nós ocidentais, tão apaixonados pelo pater ratio (pai razão). Os que fogem desta razão, por outro lado, tantas vezes acabam caindo em novas unilateralidades que, tantas vezes, também precisam ser vividas (e daí, p.ex, o sonho dos primitivistas).

 
O movimento psiconauta, portanto, que volta a ter força, precisa oscilar entre ciência e movimento social vivo para que não tenha uma atitude resignatária diante dos problemas sociais amplos, estando deitado como amante com nosso zeitgeist (espírito da época) e, por outro lado, sendo sua transcendência. Uma consciência ampliada, se é isto que almejam os psiconautas contemporâneos, exige um comprometimento e também uma ética mais apurada. Se não for assim, a psilocibina em cápsulas e o LSD em blotters, logo se tornarão meros remédios vendidos nas drogarias da esquina, aliados aos padrões de destruição do mundo e de nós humanos, mas, não em direção a um além-homem, de uma humanidade em devir, mas de um sub-homem, preso e impossibilitado de re-afirmar sua ligação com o cosmos, com a vida, com o ainda-não.

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[1] - O termo é de Ernst Junger e se refere aos exploradores ou viajantes da psique que utilizam substâncias enteogênicas para tal finalidade.

[2] - Etimologicamente: Volver-se divino interiormente. (Leia mais aqui no Blog)

[3] - Sobre a sabotagem da produção por meio do uso da cachaça por escravos ver Álcool e Drogas na História do Brasil (org. Henrique Carneiro)

2 comentários:

Cauê Tragante disse...

muito bom o artigo, vc sabe o nome de mais alguma obra do "Jung"? obrigado

Fernando Beserra disse...

Fala Cauê.

Sobre a obra do Jung eu a conheço bem. Fiz pós graduação latu sensu em Teoria e Prática Junguiana, =)

Tem várias obras excelentes de Jung. Para começar sugiro: "O Homem e seus símbolos" ou "Fundamentos da Psicologia Analítica". Se for para ler autores falando sobre psicologia junguiana, um livro que costuma indicar-se é o de Nise da Silveira: "Jung vida e obra".

Abraço

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